Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Uma grande base aliada pode ser bem frágil

A questão em torno do ministro Palocci tem sido fonte para muitas elaborações. Por uma questão acadêmica, tenho me dedicado ao estudo do escândalo político e sua relação com a mídia, especialmente. E, ultimamente, por exemplo, tenho me posicionado em várias oportunidades acerca do mensalão. Mas, o que o mensalão tem a ver com o recente caso Palocci? De forma estrita, quase nada, mas são questões que trazem a possibilidade de se ver como a relação entre o Executivo e o Legislativo são frágeis e repletas de interesses conjunturais.

Até bem pouco tempo imaginava-se que o governo Dilma, que começou dando sinais de revitalização na forma de pensar a política externa e a questão sindical, seria um governo bem mais maduro que seu antecessor. Vários setores da oposição e da mídia aplaudiram algumas movimentações do governo. O ex-presidente Fernando Henrique chegou a dizer que havia algo de muito “civilizado” no comportamento de Dilma, quando do episódio da vinda de Obama ao Brasil. Além disso, no Congresso, a oposição parecia que seria facilmente esmagada pelo rolo compressor de uma imensa base aliada.

Chantagens a todo instante

Mas, o que aconteceu? As coisas não estão se revelando tão simples. A presidente parece ter perdido o controle sobre os fatos. Desde o anúncio de sua pneumonia, está muito afastada. Em seguida veio o caso Palocci e ela continuou muito calada, só vindo à tona para pedir que não politizassem a questão. Pedido difícil, pois seus próprios aliados, ao invés de optarem por esclarecer as dúvidas, acusam todos de “golpistas”. Depois, veio o ex-presidente Lula, ocupando um espaço que responde a duas necessidades: atende à sua saudade pelo poder e atende à fragilidade de Dilma no quesito relacionamento com o Congresso. A presidente Dilma não é tão forte como se chegou a imaginar. Ela tem uma postura gerencial e técnica muito forte, isso é verdade, mas em se tratando de “política”, ela é muito frágil. E o grande receio é que entregue a coordenação política de seu governo a alguém que alimente expectativas imperiais, como foi o caso de José Dirceu quando do início do governo Lula.

O PT, com essa enorme bancada à sua disposição, tem a grande oportunidade de promover muitos debates e levar à frente muitas reformas para a continuidade da modernização desse país. Mas só muito lentamente absorve a ideia de que, na realidade, está mesmo trabalhando com uma agenda que ainda é a do governo Fernando Henrique, mas que pode deixar sua marca na questão social, por exemplo. O fato é que o governo só age muito lentamente, e sob pressão, como na recente questão da privatização dos aeroportos ou na questão da Telebrás.

Mas, pior que isto, é o governo não saber o que fazer com sua base aliada, que se desfaz em chantagens a todo instante, como no mais recente episódio em que o governo teve que recuar de seu projeto de educação contra a homofobia em troca de apoio a Palocci no Congresso. Como vinha dizendo, há o risco sempre de entregar sua coordenação política a alguém que responde a desejos imperiais, como José Dirceu. Mas, por que isso seria um risco? A crise do mensalão tem as respostas a esta questão. Vejamos.

A tese do caixa-dois

A crise do mensalão foi um episódio marcante da recente República brasileira. Sem dúvida, o maior escândalo político desde a redemocratização nos anos 80. Falou-se muito em “compra” de apoio político por parte do governo e, de fato, o escândalo significou a derrocada de inúmeras lideranças petistas naquele momento. José Dirceu, José Genoíno, Sílvio Pereira, José Paulo Cunha, Delúbio Soares, entre outros mais que renunciaram a seus cargos legislativos ou foram cassados.

Segundo a tese oficial, sempre defendida pelo ex-presidente Lula, as denúncias não passavam de uma “conspiração da mídia e da oposição contra o governo de alguém ligado aos pobres”. E, mais tarde, depois de tanto negar toda e qualquer acusação, o ex-presidente, foi gradativamente admitindo que teriam ocorrido “erros” por parte de algumas pessoas no partido e que esses erros se limitavam ao mau uso de verbas de campanha eleitoral para o financiamento de despesas. Ou seja, para o ex-presidente, mesmo quando admitiu algo, foi no sentido de um “simples” problema de caixa dois.

Qual o lugar da “corrupção” neste evento? Se, para o governo não havia nada que indicasse corrupção, para as investigações do Congresso, do Ministério Público, da Polícia Federal e até para o olhar inicial do Supremo Tribunal Federal, haviam indícios, sim, de corrupção e desvio, inclusive, de dinheiro de estatais para parlamentares e membros do PT e outros partidos.

Não endosso a tese do ex-presidente. Ela é muito frágil, essencialmente ideológica e discursiva, o que contrasta com as demonstrações dos “esquemas” evidenciados nos relatórios de investigação. Dessa forma, cabe uma pergunta que acredito ser fundamental: quais as condições políticas para o surgimento do mensalão?

Não há como não responsabilizar Lula

Numa tentativa de contribuir para esta resposta, ofereço uma hipótese que explica o mensalão a partir daquelas condições pelas quais o PT imaginou poder governar ao lado do Congresso Nacional. José Dirceu era o ministro da Casa Civil e responsável, em última instância, pela forma específica através da qual seria montado um relacionamento com o Congresso Nacional visando à constituição de uma base de apoio aliada. Resumidamente, então, digo que a “fórmula” desenvolvida por José Dirceu, com o apoio do PT, para criar uma base de apoio no Congresso passou pelas seguintes medidas que, ao final, conjugadas, criaram as condições propícias para a instauração do mensalão e sua posterior crise, levada a público quando das denúncias de corrupção contra Roberto Jefferson, então um aliado e integrante dos esquemas. Qual era esta fórmula?

** Dependência pessoal – o governo apostou em negociações diretas com os parlamentares, principalmente dos pequenos partidos. Com isso, desconsiderou o poder de muitas lideranças partidárias como instâncias de negociação entre o governo e suas bancadas;

** Pulverização partidária – Os grandes partidos, principalmente os de oposição foram alvos de “ataques” no sentido de atrair-se deputados para partidos pequenos. Essas fortes “migrações” partidárias, enfraqueciam a oposição e fortaleciam os pequenos partidos, mas sempre num quadro de fragmentação e pulverização, evitando-se maiores concentrações de poder de barganha por parte destes partidos frente ao governo;

** Aparelhamento da máquina estatal – Desde os momentos iniciais de governo o PT comportou-se de forma “desatenciosa” com relação a seus aliados políticos no governo. Se os partidos aliados tinham sido importantes para a eleição de Lula não pareciam ser importantes para governar. O PT não admitia “dividir” o governo e, quando o fazia, era de forma muito tímida, irritando os partidos aliados e acreditando que outras “negociações” poderiam suprir esta pouca vontade em dividir o governo. O resultado foi uma forte ênfase no aparelhamento do Estado, o que implicou um crescimento exagerado nos cargos públicos comissionados ocupados por pessoas diretamente ligadas ao PT;

** Fatiamento de cargos públicos -Trata-se de uma outra estratégia para evitar qualquer maior poder nas mãos de aliados. Aqui, o governo ao invés de entregar o órgão público a um partido aliado, o “fatiava”, ou seja, distribui seus cargos disponíveis para membros de diversos partidos, evitando concentrações;

** Ausência de Lula – Até que o escândalo do mensalão viesse à tona, o ex-presidente Lula era uma figura tímida, principalmente no relacionamento com o Congresso Nacional. Isso era uma queixa crescente dos parlamentares que se diziam “vítimas” do poder “concentrador” de José Dirceu. Isso teve um significado forte na crise, mas precisa ser relativizado para não se vitimizar Lula, afinal de contas, Dirceu era o seu principal “comandante”, o fiador último da estratégia que levou Lula ao poder e organizou o seu governo. Portanto, Se Dirceu falhou em algo não há como deixar de responsabilizar o ex-presidente Lula, no mínimo por omissão no que diz respeito à organização de seu próprio governo e quanto ao relacionamento com o Congresso Nacional. Não à toa, Lula tomou para si o papel de principal defensor de Dirceu. Talvez tenha sempre se sentido como o principal responsável por tudo aquilo. Só que, ao invés de contribuir para a moralização, optou pela “negação” e construção de outra explicação para o fato. Bem, mas isso é perfeitamente legítimo na disputa política.

Capacidade de “explicação” dos fatos

Trata-se de uma hipótese a ser ainda melhor investigada. Mas, quando tratamos do mensalão, não podemos deixar de observar atentamente as condições políticas que o geraram, sob o risco de percebermos os escândalos políticos como simples “intrigas” entre a mídia, o governo e a oposição. Esse discurso só interessa a quem está no poder. Na realidade, os escândalos políticos são gerados por questões políticas e isso precisa sempre estar bem claro.

Não há como negar que o escândalo do mensalão significou, também, uma disputa simbólica, principalmente entre a mídia e o governo, mas isso não pode esconder o fato de que, por trás daquela crise, haviam condições políticas precárias que criavam sérios transtornos na relação entre o Executivo e o Legislativo.

Quando da visibilização do escândalo, o comportamento da mídia, em grande parte, revelou-se denunciativo e investigativo, algo que, podemos muito bem dizer que é próprio da mídia. Entretanto, faltaram, à época, maiores investigações no sentido de associar o escândalo, menos à questões de moralidade de pessoas (parlamentares, políticos etc.) e mais a questões de opção política. É nesse sentido que a crise do mensalão, além de simbólica é, também, política, revelando muito das fragilidades do sistema político brasileiro, principalmente quando o assunto é o relacionamento entre o Executivo e o Congresso Nacional.

Se a mídia teve seu papel decisivo de “visibilização” ao trazer à tona denúncias, é preciso que se tenha, por outro lado, capacidade de “explicação” dos fatos, justamente para não ficarmos reféns de discursividades oficiais ou meramente ideológicas e partidárias.