Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um alerta de US$ 4 trilhões

As economias mais dinâmicas têm disputado com muito empenho o mercado internacional de serviços, onde se movimentam US$ 4 trilhões por ano. Mas o governo brasileiro só agora se mostra interessado em participar, em Genebra, da negociação sobre esse mercado. Têm surgido vários sinais de mudança de rumo da diplomacia comercial e esse é sem dúvida um dos mais notáveis.

Poucos jornais noticiaram essa demonstração de interesse. Poucos mantêm cobertura regular em Genebra, sede da Organização Mundial do Comércio (OMC), e mesmo no Brasil a reportagem sobre diplomacia econômica e comercial anda muito fraca. As matérias amplas, bem informadas e atraentes saem quase sempre nos mesmos – e poucos – jornais. Mesmo entre estes o desempenho é desigual.

A decisão de incluir o Brasil no debate sobre o comércio de serviços foi um das mais inovadoras, embora menos espetaculosas, do presidente interino Michel Temer. Obviamente o assunto foi provocado pelos novos ministros ligados à área comercial. Para entrar no jogo, o País terá de ser aceito pelos negociadores já envolvidos na formatação do acordo sobre serviços. Mas a novidade merece atenção mesmo sem esse detalhe.

A mudança denota uma concepção de como o país deve buscar a integração nos mercados globais. É uma concepção diferente daquela dominante em Brasília a partir de 2003. A alteração de rumo dificilmente renderá manchetes, por algum tempo, mas, se bem acompanhada, poderá sustentar histórias importantes e atraentes, se o assunto for explorado.

As implicações da diplomacia econômica são muito mais extensas do que podem parecer quando o assunto é examinado superficialmente. Concepções de comércio estão ligadas a ideias amplas sobre o funcionamento da economia. Envolvem escolhas sobre políticas indústrias, sobre a modernização do setor de serviços e, naturalmente, sobre agendas para educação, formação de mão de obra e desenvolvimento científico e tecnológico.

Nos países mais desenvolvidos – e nos emergentes mais dinâmicos , a pauta da diplomacia econômica e comercial ampliou-se notavelmente nos anos 2000.

A mais ambiciosa das negociações, a Rodada Doha, com envolvimento de todos os membros da OMC, emperrou em poucos anos e já foi enterrada, embora, nunca tenha havido um sepultamento oficial. Mas dezenas de países multiplicaram, nesse período, acordos de comércio e investimento e ampliaram as formas de integração e de cooperação.

Houve acordos variados entre países e entre blocos e alguns dos empreendimentos mais ambiciosos. Um desses é o tratado entre Estados Unidos e União Europeia. O assunto pode ser complicado pelo Brexit, o abandono do bloco europeu pelo Reino Unido, mas certamente os britânicos tentarão de alguma forma continuar no jogo.

Mudança de prioridades

O Brasil ficou fora de toda essa gigantesca movimentação, limitado a poucos e pouco relevantes acordos concluídos em conjunto pelos membros do Mercosul. Mesmo o Mercosul pouco avançou na integração entre seus sócios, como comprova a manutenção, até hoje, das limitações impostas pelo acordo automotivo entre Brasil e Argentina e pela permanência de barreiras comerciais intrabloco. A mudança do governo argentino foi primeiro sinal de possíveis alterações de rumo, mas a abertura da economia argentina provavelmente será muito cautelosa por algum tempo.

Enquanto o Mercosul pouco avançou até na própria consolidação, outras economias latino-americanas multiplicaram acordos comerciais, com parceiros do hemisfério e de fora. Além disso, preparam-se – é o caso da Aliança do Pacífico, criada por Chile, Peru, Colômbia e México – para entendimentos com países da Ásia.

Até a negociação da Alca, a Área de Livre Comércio das Américas, torpedeada pelos governos brasileiro e argentino em 2003 e 2004, acabou sendo retomada, de alguma forma, como haviam advertido os negociadores americanos.

Acertos entre os Estados Unidos e vários países da América do Sul , da América Central e do Caribe, foram afinal concluídos. O México já era membro do Nafta, o Acordo de Livre Comércio da América do Norte, juntamente com Estados Unidos e Canadá. Os quatro membros do Mercosul ficaram fora desse jogo, assim como Bolívia, Equador e Venezuela.

Acordos entre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, os Brics, jamais foram sequer discutidos. O governo brasileiro até poderia ter tido algum interesse numa iniciativa desse tipo, mas os demais tinham projetos muito diferentes e suas prioridades eram outras. Ao contrário das autoridades brasileiras, os governantes dos demais Brics estavam mais empenhados em consolidar posições nos mercados mais desenvolvidos.

Na maior parte da imprensa brasileira, a cobertura da diplomacia comercial perdeu espaço e vigor na maior parte dos jornais onde ainda valia algum espaço. Em outros, nunca chegou a se desenvolver.

Não basta entrar, ocasionalmente, nos assuntos incontornáveis, como uma reunião de cúpula do Mercosul, para acumular a competência necessária. Competência na cobertura exige muito mais que isso.

Sem acompanhamento constante e muita informação, repórteres pouco poderão fazer além de reproduzir declarações e registrar os fatos mais visíveis. Além disso, serão vulneráveis, é claro, à manipulação das informações.

A mesma observação vale, obviamente, para outras áreas de cobertura, mas esse detalhe tem sido negligenciado com frequência.

Se as mudanças na diplomacia comercial se consolidarem, serão acompanhadas de alterações em áreas importantes da política econômica. Tudo isso poderá estimular maior atenção a um setor pouco valorizado na maior parte dos jornais, nos últimos anos. O resultado será, provavelmente, um ganho na cobertura econômica.

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Rolf Kuntz é colaborador do jornal O Estado de São Paulo e professor de Filosofia Política na USP.