Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Não, Milton Ribeiro, você não é Dietrich Bonhoeffer

(Foto: Wikimedia)

Olhem bem para a foto do alemão Dietrich Bonhoeffer na edição francesa do Wikipedia, aqui reproduzida.

Não é exagero se dizer que nas fotos divulgadas do pastor brasileiro Milton Ribeiro, indicado para Ministro da Educação, ele se parece com o pastor alemão Dietrich Bonhoeffer, nessa foto tirada em 1939.

Ambos se parecem, mas atenção, o pastor presbiteriano santista Milton Ribeiro não é nem de longe o pastor alemão Dietrich Bonhoeffer.

Arrependo mesmo de ter imaginado escrever um texto destinado a comparar os dois pastores. Isso porque, antes de ter iniciado este quarto parágrafo, fui fazer uma pesquisa sobre o “teólogo” Milton Ribeiro e agora me sinto constrangido por ter ousado citar Dietrich Bonhoeffer no título deste artigo.

Por quê? Porque o pastor luterano alemão Dietrich Bonhoeffer é um herói nacional e também europeu, com estátuas construídas em sua homenagem, não só na Alemanha como na Inglaterra, Estados Unidos e países que lutaram na Segunda Guerra Mundial contra o nazismo e seu criminoso líder, Adolf Hitler.

Porque Dietrich Bonhoeffer foi um corajoso combatente da resistência alemã, quando a própria Igreja Luterana alemã havia aderido ao nacional-socialismo de Hitler.

Porque Bonhoeffer foi dos primeiros a denunciar o risco do nazismo de Hitler provocar uma Segunda Guerra Mundial. E pagou caro por isso: preso num campo de concentração foi enforcado, por ordem de Hitler, pouco antes da derrota da Alemanha.

Ainda mais, Dietrich Bonhoeffer era um teólogo erudito, que não se satisfazia com interpretações fáceis e evidentes dos textos bíblicos. Estudioso da teologia de Kart Barth, não deixava de lado Hegel e Max Weber. Bolsista durante um ano, em Nova Iorque, logo depois da Grande Depressão, descobriu a importância do Evangelho Social ao constatar a miséria em que viviam principalmente os negros norte-americanos.

Seu retorno à Alemanha, depois de exercer o pastorado na Inglaterra, coincidiu com a ascensão de Hitler e da ideologia nazista. Um de seus primeiros combates foi contra o controle da Igreja Luterana por Hitler.

E o que se sabe sobre o pastor Milton Ribeiro? Alguma semelhança com a resistência de Dietrich Bonhoeffer ao nazismo de Hitler na Alemanha? Não, nenhuma.

Muito ao contrário. Embora não sejam de hoje as revelações extremistas de direita do ex-deputado federal e do candidato à presidência Jair Bolsonaro, isso não impediu ao pastor Milton Ribeiro lhe dar seu apoio na campanha eleitoral. E sabemos que os apoios dos pastores evangélicos em geral equivalem ao de cabos eleitorais.

O culto às armas, as declarações de que bastariam serem mortos uns 30 mil, a linguagem violenta e suja, as referências à uma política indígena contrária às reservas, a destruição da Amazônia, os gracejos racistas contra os negros, a posição agressiva contra os homossexuais, além das denúncias veiculadas na imprensa sobre as tendências nazifascistas do candidato não foram obstáculos ao apoio do pastor Milton Ribeiro à Jair Bolsonaro.

A recompensa não demorou — o pastor Milton Ribeiro foi contemplado com um cargo na Comissão de Ética do governo, encarregada de localizar a oposição ao presidente. Agora, a cereja em cima do bolo é a atual indicação para cuidar da Educação, sem levar em conta se tratar de um pastor ultra conservador e fundamentalista, sabendo-se que não aprovará nenhum projeto, nenhuma promoção, nenhuma atividade artística fora dos rígidos padrões morais puritanos presbiterianos, dignos dos passageiros do Mayflower e das primeiras colônias inglesas nas terras norte-americanas.

O Ministério da Educação entrará em plena Idade Média com o risco de se tentar modificar a Lei das Diretrizes e Bases da Educação, em vigor desde 1996 e que fixava como fundamentos básicos princípios como estes:

Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; respeito à liberdade e apreço à tolerância; coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino; vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais; e consideração com a diversidade étnico-racial.

Com a quebra do princípio da laicidade e a pressão dos evangélicos, o novo ministro poderá permitir a influência da religião na fixação dos currículos escolares, num tipo de censura velada mas que poderá desvirtuar e corromper todo o programa educacional do Brasil. Foi isso o que ocorreu durante as ditaduras de Franco e Salazar, com prejuízo cultural enorme para Espanha e Portugal.

É evidente que alterada a maneira de se educar, sob pressão religiosa nos princípios pedagógicos, haverá consequências em outra área — na maneira de se propor a Cultura ao povo, e isso inclui espetáculos, música, cinema, teatro e literatura. Caso continue o governo Bolsonaro, ou pior ainda no caso de uma reeleição, a censura educacional se alastrará e repercutirá nos programas culturais do Brasil sob o controle de igrejas e pastores, num retrocesso cultural alarmante.

E a influência do privatismo educacional norte-americano poderá chegar às universidades brasileiras, colocando em perigo sua gratuidade tornando um privilégio das classes alta e média o acesso às universidades.

Do retrocesso educacional ao retrocesso cultura bastará um passo. Haverá queima de livros considerados amorais, imorais? Quem sabe do que será capaz o novo defensor da verdade e da moral bíblicas. Haverá apoio à montagem de espetáculo musicais que não sejam gospels? Até onde irá a censura ao teatro, ao cinema e à televisão?

Será punido o ato sexual sem casamento? Em todo caso, reviveremos a época antepassada em que amigar sem casar era mal visto. Num dos quatro vídeos do pastor puritano moralista Milton Ribeiro, só vale sexo no casamento. E a punheta e a masturbação? Sem dúvida levam ao inferno.

Se eu não tivesse visto o vídeo do próprio pastor Milton Ribeiro não acreditaria — nos casos de pedofilia, são as vítimas que provocam o pedófilo. Quando sai da ordem moral, o pastor condena o bolsa família por incentivar a vagabundagem.

Deve haver ainda outros absurdos suficientes para impedir a esse pastor dirigir um Ministério da Cultura, porém um só deles bastaria para os pais e mães saírem às ruas e exigirem a demissão antes da posse dessa figura: é quando Milton Ribeiro nos revolta ao defender com voz de anjo o retorno do castigo corporal nas crianças, talvez influenciado por textos do Velho Testamento.

Ou seja: teremos um ministro contrário ao Estatuto Nacional das Crianças, que, numa igreja, prega para seus fiéis aplicarem corretivo corporal no seu filho ou filha, a fim de andarem no bom caminho. O Estatuto no seu Art. 5º, diz — Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Vale ainda um adendo — em 1964, por influência do pastor Boanerges Ribeiro, ex-pastor da Igreja Presbiteriana de Santos, logo depois do Golpe Militar, foi instaurado um Inquérito Policial Militar (IPM) no Seminário Presbiteriano de Campinas (hoje Seminário do Sul) e no de Recife. Boanerges Ribeiro, até hoje a mais importante figura do presbiterianismo brasileiro. Teólogo, intelectual e escritor, conservador fundamentalista, homem de direita, dirigiu durante 12 anos o Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil e, logo depois, assumiu a direção e a reitoria da Universidade Mackenzie, sempre imprimindo suas convicções religiosas e políticas.

O IPM nos seminários presbiterianos significou o desligamento de numerosos seminaristas e professores, que tivessem mostrado qualquer interesse ou entusiasmo pelas chamadas Reformas de Base que agitavam o Brasil da época ou que tivessem escrito ou apoiado críticas ao chamado Evangelho Fundamentalista, nos jornais Brasil Presbiteriano ou Mocidade.

Depois da limpeza, com novos professores sem a mesma formação teológica inspirada nos grandes teólogos europeus, sem o mesmo espírito crítico que caracterizou a Reforma de Lutero e Calvino, não se pode esperar de Campinas, que surjam teólogos da têmpera de Dietrich Bonhoeffer.

Outra coisa a lamentar é ter sido a defesa da laicidade no poder público uma bandeira do protestantismo, hoje ignorada no Brasil pelos evangélicos em geral. Assim, como ignoram a defesa de nossas florestas, de nossos indígenas e dos direitos humanos dos homossexuais, numa rejeição do legado conceitual da Reforma.

***

Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil, e RFI.