Quinta-feira, 11 de dezembro de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1368

Brasil e seu duplo novembro negro

(Foto: Bruno Peres/Agência Brasil)

Teria o deus romano de duas faces, Janus, migrado da Itália para o Brasil? Em novembro de 2025, mês dedicado à consciência negra e mês da Black Friday, a cor preta é reveladora de uma profunda cisão brasileira. No mesmo mês, os meninos verdes [1] de Belém, o verde da COP30 defendido por Lula, não conseguiram convencer os brasileiros, nem o chanceler Friedrich Merz, que se declarou feliz ao partir de Belém e voltar a Berlim, na Alemanha, segundo ele “um dos países mais agradáveis do mundo”.

Um Black November no Brasil: das liquidações da Black Friday às manifestações do mês da consciência negra. Esses eventos marcados por uma cor simbolizam a polarização em um instantâneo esclarecedor dos contrastes de um país sempre em busca de uma cidadania compartilhada por todos.

Em novembro, vitrines, cartazes, propagandas na televisão, páginas de anúncios e folhetos colocaram o Brasil de preto, de norte a sul, de leste a oeste, da Amazônia ao distante sul gaúcho. O calendário norte-americano emplacou no Brasil, como demonstra a propaganda massiva em todo o Brasil. O Black November veio depois do Halloween. A imprensa brasileira cobriu inclusive o Dia de Ação de Graças, o Thanksgiving Day dos americanos. Os Papais Noéis, inventados por um famoso fabricante de refrigerantes saturados de glicose, bem agasalhados com roupas e gorro vermelhos, acrescentaram outra cor a esse fim de ano, de lojas a restaurantes rodoviários, todos enfeitados na mesma paleta, em complemento a esse Brasil Disney World.

No entanto, nada de surpreendente nesta imersão na cultura americana, algo em nada repentino. Os fast foods, de todas as marcas norte-americanas, estão por toda parte. Os mais humildes chegam a pé para comer seus hambúrgueres regados com refrigerantes bem açucarados. Os que têm carros fazem filas nos drive-thru. Os preguiçosos e/ou caseiros pedem um delivery. Tanto uns quanto os outros, os que caminham, os que dirigem ou os que ficam em casa, comem seus lanches e bebem seus refrigerantes com o nariz colado nos celulares. O Brasil se apresenta triunfalmente, no sentido mais literal da palavra, como um dos três países mais conectados do mundo, viciado em redes sociais, assim como na gastronomia norte-americana.

O resultado financeiro correspondeu ao investimento: nada mais do que um pico no aumento de vendas na Black Friday. Na sexta-feira, 28 de novembro, a Associação Brasileira de Inteligência Artificial e E-commerce estimou o movimento de compras em cerca de 13,3 bilhões de reais. Essas compras, apresentadas como um momento de realização de desejos pessoais, concentraram-se em celulares, perfumes, seguidos por roupas, acessórios e sapatos. O sucesso foi tão grande que a Folha de S. Paulo anunciou a continuação do evento, logo na sequência, nesse mesmo espírito, batizada de Cyber Monday [2].

Novembro também encarnou o mês afro-brasileiro. Muito recente em sua história, o Brasil comemorou, em 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra. O presidente Lula oficializou por decreto, em 21 de dezembro de 2023, esse dia dedicado à contribuição dos negros para a identidade nacional brasileira. Por que 20 de novembro? A ideia surgiu a partir de propostas de intelectuais afro-brasileiros reunidos em 1970, em plena ditadura militar, no sul do país, em Porto Alegre. Eles escolheram para essa comemoração, com repercussões contemporâneas, relembrar a memória de um líder combatente negro, Zumbi dos Palmares, que resistiu por vários anos em seu refúgio ou quilombo aos ataques dos soldados do rei e dos mercenários contratados pelos colonos portugueses.

Este dia 20 de novembro nacional foi motivo para várias iniciativas, mostrando um panorama rico em avanços inegáveis, mas ainda longe de alcançar uma igualdade aceitável entre cidadãos negros e brancos. Entre essas iniciativas, podemos citar a manifestação organizada em São Paulo por editores de escritores afro-brasileiros, a cerimônia solene de posse de Ana Maria Gonçalves como membro da Academia Brasileira de Letras no Rio de Janeiro [3], e a realização da segunda Marcha Global das Mulheres Negras em Brasília. A primeira marcha foi organizada em 2015, último novembro do mandato de Dilma Rousseff, destituída inconstitucionalmente pelos simpatizantes e parceiros de Jair Bolsonaro, em 2016. A Marcha de 2025 coincidiu com a federalização do feriado de 20 de novembro e com a prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro. Dezenas de milhares de mulheres negras de todo o Brasil desfilaram na esplanada dos ministérios para exigir “Reparação e Bem-viver”. A Agência Brasil estimou o número em 300 mil. As ministras negras do governo estavam presentes. O Congresso dos Deputados recebeu solenemente uma delegação da Comissão Organizadora.

As manifestantes agradeceram ao Congresso e aos ministros por esses gestos de simpatia. Ao mesmo tempo, lembraram sua decepção, expressa em letras garrafais, em uma enorme bandeira brasileira. Os afrodescendentes desejavam assim manifestar sua amargura após a decisão de Lula de indicar para o Supremo Tribunal Federal um magistrado branco, que se declara evangélico. Elas esperavam, sendo o Judiciário 82,4% branco [4], outra nomeação. Adilson Moreira, eminente professor de direito constitucional, tornou-se, em 17 de novembro, em uma entrevista, o porta-voz de uma frustração coletiva afro-brasileira: “o critério que deveria ser priorizado para nomear um juiz do Supremo Tribunal Federal deveria ser o da diversidade, e não um cálculo político”.

No entanto, as coisas mudaram desde 1888, data da abolição da escravidão. Lentamente, sem dúvida, muito lentamente para os cidadãos brasileiros de origem africana. A certidão de óbito do primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, Joaquim Maria Machado de Assis, conservada na Fundação Rui Barbosa, datada de 29 de setembro de 1908, o qualifica como “branco”. Desde então, seus retratos recuperaram suas cores mestiças. O mesmo foi feito com os retratos do primeiro presidente brasileiro negro, Procópio Peçanha, após o “desbranqueamento” dos retratos oficiais realizados na época de seu mandato (1909-1910).

Black is Black cantava em 1966 a banda de rock espanhola Los Bravos e, depois deles, Noir c’est Noir, cantava o franco-belga Jean-Philippe Smet, com o nome artístico anglo-saxão Johny Halliday. Essa cor fez dupla entrada no Brasil, em novembro de 2025.

Texto publicado originalmente em francês, em 03 de dezembro de 2025 no site Nouveaux Espaces Latinos, Paris/França, com o título original: “Brésil en novembres noirs”. Disponível em: https://www.espaces-latinos.org/archives/130710. Tradução de Andrei Cezar da Silva e Luzmara Curcino.

[1]  Título de um conto da poetisa Cora Coralina, “Os Meninos Verdes”, na versão original.

[2] Folha de S. Paulo, 28 de novembro de 2025, p. A31.

[3] Ana Maria Gonçalves é autora do romance histórico “Um defeito de cor”, que vendeu mais de 150 mil exemplares em 41 edições (dados de 2024).

[4] Folha de S. Paulo, 18 de novembro de 2025, p. A6.

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Jean Jacques Kourliandsky é Diretor do “Observatório da América Latina” junto à Fundação Jean Jaurès, na França, especialista em análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014). Colabora frequentemente com o “Observatório da Imprensa”, no Brasil, em parceria com o Laboratório de Estudos do Discurso (LABOR) e com o Laboratório de Estudos da Leitura (LIRE), ambos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).