Thursday, 02 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A carteira de vacinação de Bolsonaro e a abertura da tampa do bueiro da corrupção

(Foto: Arquivo)

A repercussão da investigação sobre a falsificação da carteira de vacinação de Bolsonaro, de seus familiares e de assessores próximos, trouxe à tona a temática da corrupção no governo do ex-presidente. Vale lembrar que o representante da extrema direita foi eleito com a bandeira de combate à corrupção, após um conturbado período de criminalização da esquerda promovido por ex-magistrados (hoje políticos em sua maioria) e pela Grande Mídia.

O fim da corrupção foi anunciado em diversas entrevistas pelo ex-presidente e a temática sempre foi um elemento importante para a manutenção do vínculo entre o governo e seus apoiadores. Em 2020, por exemplo, Bolsonaro afirmou que acabou com a Lava Jato porque não havia mais corrupção no governo. No ano eleitoral de 2022 o ex-presidente também repetiu que havia acabado com tal prática em diferentes ocasiões.

Embora diversos escândalos indicassem a presença de ilegalidades no governo Bolsonaro, sua base de apoio continuava convicta de que o ex-capitão havia, de fato, colocado fim à corrupção no Brasil. Podemos citar como exemplos de investigações concretas que contestaram a suposta moralidade do governo da extrema direita: a tentativa de cobrança de propina para a compra de vacinas contra a Covid-19; as propinas exigidas em barra de ouro pelo então ministro da educação, Milton Ribeiro, por intermédio de pastores ligados ao governo; o envolvimento do ex-ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, com o contrabando de madeira; o escândalo do asfalto, dos ônibus e dos tratores superfaturados; entre outros.

Porém, apesar dos inúmeros indícios e da grande quantidade de provas embasando as suspeitas de corrupção do governo Bolsonaro, a maioria das investigações não foram aprofundadas e o ex-presidente praticamente não perdeu o apoio de seus correligionários. Como isso foi possível?

Em primeiro lugar, o discurso religioso e moral que ficou evidente desde o movimento de impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff seduziu inúmeras pessoas, funcionando como um elemento aglutinador para o fortalecimento da extrema direita. Com os lemas: Deus, pátria, família e fim da corrupção, diversos políticos atraíram eleitores para um movimento de massa, tendo como principal líder Jair Messias Bolsonaro. Conforme descrito por Freud, no início do século XX, as massas são movidas por palavras de ordem e por ilusões, não havendo preocupação com a verdade. Nesse processo ocorre grande identificação com o líder e entre os membros da massa, o que resulta para além de uma sensação de pertencimento, um sentimento pleno de satisfação por ver-se representado pelo outro. Neste sentido, há uma coesão e uma crença nos que pertencem ao grupo e, ao mesmo tempo, hostilidade e intolerância aos de fora. A massa é influenciável, crédula e acrítica, pois, segundo Freud, as pessoas perdem sua capacidade reflexiva, do mesmo modo que se distanciam de suas subjetividades, passando a agir de acordo com o grupo e de forma bastante primitiva (FREUD, 1921). Não se pensa de forma conceitual, mas sim através de imagens, o que é ainda mais grave na sociedade atual que se pauta por memes, figurinhas, frases curtas, características da comunicação estabelecida nas redes sociais.

Neste sentido, é preciso ressaltar que o aparato de comunicação do bolsonarismo, utilizando-se de Fake News, propagadas em redes sociais e sites, criou uma verdadeira bolha, descolada da realidade do país. Ou seja, os militantes da extrema direita, em sua maioria, passaram a experimentar uma representação da realidade totalmente deturpada e descolada do real. Segundo Debord, ao analisar o espetáculo nas sociedades em que predominam as condições modernas de produção, tudo o que é diretamente vivido se esvai na fumaça da representação (DEBORD, 2003, p. 13). Para o autor, “a realidade considerada parcialmente reflete em sua própria unidade geral um pseudo mundo à parte, objeto de pura contemplação. A especialização das imagens do mundo acaba numa imagem autonomizada, onde o mentiroso mente a si próprio” (DEBORD, 2003, p. 14). Tal análise parece bastante adequada para compreendermos a existência da bolha de informação da extrema direita, já que a fumaça da representação permeada pelas Fake News apresenta um verdadeiro mundo à parte para os militantes que são bombardeados com estes conteúdos, gerando um verdadeiro comportamento hipnótico, segundo o qual nenhuma informação de fora da bolha pode ser considerada, mesmo que para isso estas pessoas sejam obrigadas a mentir para si mesmas, para continuarem enxergando alguma coerência em suas representações peculiares da realidade. 

Em segundo lugar, para explicarmos a manutenção do apoio dos correligionários da extrema direita ao governo Bolsonaro mesmo diante de inúmeros escândalos de corrupção, é preciso considerar o aparelhamento do Estado realizado pelo ex-presidente. A nomeação de pessoas dispostas a acobertar qualquer irregularidade em cargos estratégicos e as constantes trocas em postos de chefia de órgãos de investigação por parte do governo, além da sistemática interferência do ex-presidente em investigações que podiam comprometer a ele ou a pessoas próximas, praticamente inviabilizou um combate mais efetivo da corrupção. Sobretudo, podemos afirmar que o governo do ex-presidente realizou um verdadeiro desmonte do aparato estatal voltado para a investigação de práticas ilegais. Segundo apurado por coluna da UOL, a Polícia Federal teve uma redução de 90% de prisões em ações contra a corrupção. Tal estatística, além de demonstrar o efeito do aparelhamento do Estado, da interferência política em órgãos de fiscalização e de investigação, mostra também um dos motivos do ex-presidente não ter perdido o apoio de sua base política. Isso porque, o baixo índice de prisões por crimes de corrupção levou milhares de pessoas a acreditarem no fim de tal prática, conforme propagado por Bolsonaro. 

A questão é bastante simples: para o senso comum só existe corrupção se ela for investigada, comprovada e punida. Ou seja, se as investigações são interrompidas ou arquivadas por interferência política e se os corruptos não são presos, grande parte da população passa a acreditar que a corrupção, de fato, acabou! 

Isso nos ajuda a entender a deturpada visão dos militantes da extrema direita sobre o período da Ditadura Civil-Militar, frequentemente exaltado por bolsonaristas. Na visão destas pessoas, o período do totalitarismo no Brasil representou a moralidade e o auge da honestidade em nosso país. Ora, em um regime em que o Executivo se sobrepôs ao Legislativo e ao Judiciário, obviamente que qualquer suspeita de corrupção contra o governo não poderia ser investigada. O aparelhamento dos cargos de fiscalização por militares e a intimidação ou, até mesmo, a eliminação dos agentes responsáveis pelas investigações impediu que os inúmeros casos de corrupção do regime militar viessem à tona. 

Além disso, a falta de liberdade de imprensa e a censura também foram determinantes para abafar qualquer suspeita de ilegalidade do governo dos militares. Ou seja, a corrupção só se faz perceptível para o senso comum quando ela é denunciada, investigada e punida!

Nos últimos dias, pudemos observar uma verdadeira abertura das tampas dos bueiros da corrupção da extrema direita no Brasil. O processo de início da retomada da independência dos órgãos de fiscalização e de investigação da República, após anos de interferência e de aparelhamento do Estado, começou a produzir seus efeitos. A investigação da falsificação da carteira de vacinação do presidente teve diversos desdobramentos, que passaram pela morte de Marielle Franco, pelo envio de remessas de dinheiro para o exterior, por depósitos suspeitos feitos em dinheiro para a conta de pessoas próximas do ex-presidente e pela articulação de uma tentativa de golpe de Estado. Além de tudo isso, ainda podemos citar a interceptação de orientações feitas pelo ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, para que assessores pagassem as despesas pessoais da ex-primeira dama e de familiares em dinheiro vivo, para dificultar o rastreio da origem do recurso.

Se por um lado, as investigações podem não chegar até Bolsonaro, por outro lado elas confirmam que a corrupção praticada por agentes do governo do ex-presidente foi um traço marcante do período em que a extrema direita esteve no poder.

Contudo, os efeitos de todos estes escândalos para o apoio popular a políticos identificados com o bolsonarismo ainda são incertos. Isso porque, é notório que a maioria das publicações midiáticas quase não possuem impacto entre os militantes da extrema direita. Qualquer informação ou reflexão apresentada fora da bolha ultraconservadora é prontamente desacreditada por esta massa imbuída das mais diversas teorias da conspiração sobre a mídia e o conhecimento acadêmico. Neste sentido, o combate às Fake News, a regulamentação da internet e das big techs e o fim do financiamento das mídias voltadas para a proliferação de informações falsas são fundamentais para que a investigação e a punição da corrupção do governo Bolsonaro produzam efeitos entre os militantes ultraconservadores brasileiros. Isso porque é justamente esta rede de desinformação que sustenta a realidade paralela criada pela extrema direita, o que garante a manipulação do povo e a manutenção do apoio popular a estes políticos identificados com o bolsonarismo.

Entretanto, uma coisa já é fato: a eleição do governo Lula permitiu a retomada do funcionamento das instituições republicanas e dos órgãos de fiscalização e investigação, o que começou a trazer à tona todo o lodo da corrupção acumulado e ocultado durante os 4 anos de governo Bolsonaro. E ao que tudo indica, toda a sujeira revelada até aqui, parece ser só a superfície do que ainda está por vir.

REFERÊNCIAS:

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Projeto Periferia, 2003.

FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu. E outros textos (1920-1923). São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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Diogo Comitre é professor do IFSP, mestre e doutorando do Programa de História Social da USP; Ana Carolina Diniz Rosa Comitre é professora da UNISO, mestra e doutoranda da Saúde Coletiva da Unicamp