
(Foto: Chokniti Khongchum/Pexels)
A ciência e a política sempre caminharam juntas, mas nem sempre em harmonia. Há momentos em que se reforçam mutuamente, como quando governos financiam grandes projetos científicos que mudam a vida das pessoas. E há momentos de ruptura, quando convicções políticas ou ideológicas se sobrepõem ao que a melhor evidência científica recomenda. O recente corte de financiamento às vacinas de RNA mensageiro (mRNA) nos Estados Unidos é um exemplo dessa segunda situação.
Antes de seguir, vale explicar o que é essa tecnologia. Uma vacina de mRNA não contém o vírus inteiro nem uma versão atenuada dele. Ela leva para o corpo uma molécula sintética chamada RNA mensageiro, que funciona como um “manual de instruções temporário”. Esse manual diz às células para produzirem uma proteína específica do vírus — por exemplo, a “espícula” do SARS-CoV-2. O sistema imunológico reconhece essa proteína como estranha e se prepara para combatê-la. Essa estratégia é rápida, adaptável e segura, e já vinha sendo pesquisada havia mais de trinta anos, muito antes da COVID-19.
Foi justamente essa plataforma que permitiu que, em 2020, as primeiras vacinas contra a COVID-19 fossem desenvolvidas e aprovadas em tempo recorde, salvando milhões de vidas. Depois disso, cientistas passaram a trabalhar em versões de mRNA contra gripe, HIV, malária e até contra certos tipos de câncer. Por isso, cortar o financiamento dessa tecnologia não significa apenas renunciar a novas vacinas contra infecções respiratórias, mas enfraquecer todo um ecossistema de inovação biomédica.
O anúncio do corte foi feito pelo secretário de Saúde dos EUA, Robert F. Kennedy Jr. Ele alegou que as vacinas de mRNA “não protegem de forma efetiva contra infecções respiratórias” e que os recursos devem ir para plataformas “mais seguras e amplas”. Mas essa afirmação não foi acompanhada de estudos revisados por pares que a sustentem. E aqui entra um ponto essencial: Kennedy Jr. não é um ator neutro nesse debate. Ele é uma das figuras mais influentes do movimento antivacina norte-americano, tendo liderado por anos a organização Children’s Health Defense, conhecida por espalhar desinformação sobre imunização.
O movimento antivacina tem raízes antigas. Já no século XIX, quando a vacinação contra a varíola começou a ser obrigatória em alguns países, surgiram ligas antivacinais que alegavam desde riscos à saúde até violação das liberdades individuais. No século XX, essas narrativas foram se adaptando a cada novo imunizante. Em 1998, um médico britânico chamado Andrew Wakefield publicou um estudo falso que associava a vacina tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola) ao autismo. O trabalho foi retratado anos depois, e Wakefield perdeu o registro médico, mas a ideia já tinha se espalhado e, até hoje, alimenta a hesitação vacinal.
A pandemia de COVID-19 trouxe um fenômeno novo: a “infodemia”. Esse termo, criado pela Organização Mundial da Saúde, descreve a avalanche de informações – muitas delas falsas – que circulam durante uma crise de saúde. No auge da pandemia, redes sociais amplificaram boatos sobre supostos perigos das vacinas, curas milagrosas e teorias conspiratórias. Pesquisas mostraram que um pequeno grupo de influenciadores, conhecido como o “Disinformation Dozen”, foi responsável por uma parte enorme do conteúdo antivacina que viralizou na internet.
O governo Trump, eleito em 2025, nomeou Kennedy Jr. como secretário de Saúde, um movimento que se encaixa em sua narrativa de combate à “burocracia científica” e de valorização de vozes céticas sobre vacinas. É um contraste marcante com o legado recente da Operation Warp Speed, que, ainda no governo Trump de 2020, financiou justamente o desenvolvimento acelerado das vacinas de mRNA.
O Brasil também viveu um capítulo semelhante. Entre 2020 e 2022, o governo Bolsonaro minimizou a gravidade da COVID-19, defendeu tratamentos sem eficácia comprovada e atrasou negociações para compra de vacinas. A Comissão Parlamentar de Inquérito da COVID registrou que autoridades divulgaram repetidamente informações falsas sobre imunizantes. Ainda assim, parcerias como as da Fiocruz com a AstraZeneca e do Instituto Butantan com a CoronaVac garantiram doses para boa parte da população, mesmo sob intenso ruído informacional.
A história oferece outros paralelos. Na União Soviética, nas décadas de 1930 e 1940, a adoção das ideias pseudocientíficas de Trofim Lysenko levou ao abandono da genética moderna e atrasou a agricultura e a biologia por décadas. Nos anos 1980, a falta de ação rápida contra a epidemia de HIV nos EUA, agravada por preconceito e negligência política, custou milhares de vidas. Em todos esses casos, a interferência política nas decisões científicas não apenas atrasou soluções, mas também corroeu a confiança pública.
O corte no financiamento do mRNA, portanto, não é apenas uma escolha orçamentária. É uma decisão que reabre velhas feridas: a tensão entre ciência baseada em evidências e agendas políticas que moldam quais verdades serão aceitas e financiadas. Ao jornalismo cabe o papel de contar essa história inteira – explicando o que é o mRNA, lembrando o histórico de seu principal opositor, conectando com outros momentos em que a política distorceu a ciência e mostrando as consequências de longo prazo.
Como Stephen Jay Gould gostava de dizer, o progresso científico é contingente: depende de decisões tomadas em um tempo e lugar específicos. Cortar o financiamento do mRNA hoje é escolher quais caminhos da inovação seguir e quais fechar para sempre. É decidir não só o futuro da saúde pública, mas também o tipo de história que, daqui a algumas décadas, diremos a respeito de nós mesmos.
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Fabiano B. Menegidio é doutor em Biotecnologia e atua como pesquisador na área de Bioinformática. Professor universitário, desenvolve estudos interdisciplinares envolvendo genômica, metagenômica e ciência de dados. Coordena projetos em biotecnologia e engenharia biomédica com enfoque em inovação científica.
