
(Foto: Tim Gouw/Pexels)
A ciência não é uma ortodoxia imune a erros; é uma tradição de método que transforma falhas em degraus, por meio de crítica pública, replicação e revisão por pares. Por isso, quando governos trocam evidência por lealdade e quando a imprensa converte controvérsia fabricada em mercadoria jornalística, o que se perde não é um “lado do debate”, mas o próprio mecanismo que permite corrigir o mundo.
As duas gestões de Donald Trump formam um estudo de caso dessa corrosão. Primeiro pela tentativa de desidratar orçamentos, enfraquecer conselhos e dobrar agências técnicas; depois pela promoção a postos-chave de personagens cuja trajetória pública é, não raro, uma guerra aberta contra o consenso científico. A história dessas pessoas, suas carreiras e redes pregressas, ajuda a entender como o ataque se arma antes de se converter em política pública.
Perfis e cargos estratégicos
Na saúde pública, a segunda gestão escalou Robert F. Kennedy Jr. ao comando do Department of Health and Human Services (HHS), o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos. Kennedy chegou à política sanitária vindo de uma biografia ambígua: advogado ambiental que atuou no movimento Riverkeeper e se notabilizou como litigante combativo, mas também o mais tenaz divulgador de teses antivacinais de sua geração, a ponto de presidir uma organização dedicada a semear desconfiança nas imunizações, a Children’s Health Defense.
Ao seu lado, no National Institute of Health (NIH), Jay Bhattacharya trouxe um perfil incomum para a direção da principal agência de pesquisa biomédica: médico e economista da saúde de Stanford, conhecido não tanto por trabalhos de bancada, mas por advogar, durante a COVID-19, a ideia de “proteção focada” em vez de medidas coletivas. Essa proposta, formalizada na Great Barrington Declaration, foi amplamente contestada por epidemiologistas.
Na Food and Drug Administration (FDA), a escolha recaiu sobre Marty Makary, cirurgião de Johns Hopkins e autor conhecido por suas obras voltadas ao público leigo sobre desperdício e transparência no sistema de saúde. Makary construiu reputação acadêmica relevante em segurança do paciente, tendo participado da criação do checklist cirúrgico que se tornou referência internacional. Mas sua trajetória também é marcada por uma postura crítica a políticas de saúde baseadas em risco populacional, sobretudo em mandatos de vacinação e em certas medidas coletivas de prevenção. Nessas situações, Makary frequentemente colocou sua noção de “bom senso clínico” acima do consenso epidemiológico, tensionando decisões que exigem olhar para o coletivo e não apenas para o indivíduo.
Já para o posto de cirurgião-geral dos Estados Unidos (Surgeon General), função que não se refere a um especialista em cirurgia, mas ao principal porta-voz do governo em saúde pública e líder do United States Public Health Service Commissioned Corps, a indicação foi de Casey Means, formada em Medicina em Stanford. Ela abandonou a residência em cirurgia para migrar para a chamada medicina funcional, um campo controverso que mistura práticas convencionais e terapias de bem-estar. Cofundadora de uma startup de monitoramento metabólico, Means construiu influência como divulgadora de wellness e defensora de ideias como o “metabolismo ancestral” e a dieta como chave universal para a saúde. Sua nomeação causou controvérsia porque, além de não ter produção significativa em pesquisa clínica ou epidemiológica, estava com a licença médica inativa, o que a transformou em símbolo eloquente da prioridade dada à retórica e ao carisma em detrimento da perícia técnica.
Para a chefia do Centers for Disease Control and Prevention (CDC), a indicação inicial foi do ex-deputado Dave Weldon, médico da Flórida que, ao longo dos anos 2000, buscou visibilidade junto a grupos antivacina ao defender a hipótese de uma ligação entre imunizações e autismo. Essa ideia foi amplamente desmentida por pesquisas de larga escala e por revisões sistemáticas, mas continuou a circular em nichos conspiratórios como bandeira política. A retirada de sua nomeação, anunciada apenas na véspera da votação no Senado, não significou uma mudança de rumo, mas antes o reconhecimento pragmático de que certas fronteiras da negação científica ainda geram resistência pública e poderiam comprometer a imagem do governo.
No primeiro mandato de Trump, o elenco já anunciava a gramática do conflito. Scott Pruitt, antigo procurador-geral de Oklahoma que fizera carreira processando a Environmental Protection Agency (EPA), assumiu a própria agência com a convicção de que dióxido de carbono é regulado demais. Sua administração tentou redesenhar metodologias, desmontar conselhos e conter a linguagem do risco. Antes dele, o time de transição da agência fora entregue a Myron Ebell, veterano do Competitive Enterprise Institute e rosto midiático do ceticismo climático.
Na Casa Branca, o físico William Happer, com uma carreira acadêmica respeitável deformada pela convicção de que mais CO₂ pode ser benéfico, ensaiou montar um comitê para revisar os fundamentos da climatologia. Não conseguiu emplacá-lo, mas deixou claro o método: relativizar consensos como se evidência e opinião disputassem o mesmo tablado.
Na Educação, Betsy DeVos levou à pasta a visão que cultivara como filantropa do movimento das charter schools — escolas financiadas com recursos públicos, mas administradas de forma privada, frequentemente defendidas como alternativa ao ensino público tradicional. Ao longo de sua trajetória, ela e sua família destinaram recursos a grupos alinhados a pautas religiosas e educacionais conservadoras, como o Focus on the Family, que apoia a inclusão do Design Inteligente nas aulas de ciências, além de entidades voltadas à promoção de vouchers e à expansão das charter schools, como a American Federation for Children, o Alliance for School Choice e o Great Lakes Education Project. Essa rede de influência ajudou a criar terreno para a relativização da teoria da evolução dentro das políticas educacionais. E, nesse contexto, não era preciso rasgar jurisprudência para minar o ensino científico: bastava repetir o eufemismo do pensamento crítico como senha para a velha estratégia do “ensinar a controvérsia”, que confunde pluralismo cultural com equivalência epistêmica.
E, no campo da integridade científica, a National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA) viveu o episódio do “Sharpiegate”, quando seu chefe interino, o meteorologista Neil Jacobs, endossou a tentativa da Casa Branca de sustentar a falsa afirmação de Trump de que o furacão Dorian atingiria o Alabama. Para justificar o erro, um mapa oficial foi alterado à mão com caneta sharpie, criando a impressão de que a previsão incluía o estado. Foi a ciência meteorológica convertida em expediente retórico, um símbolo de como até dados empíricos podem ser distorcidos para proteger a autoridade presidencial.
Política científica e orçamento
Esses perfis explicam por que as políticas se movem como se movessem sozinhas. No primeiro mandato, as propostas de cortes ao NIH e à EPA, ainda que barradas pelo Congresso, funcionaram como recado para todo o sistema: a perícia técnica é vista como custo a conter. O ataque estendeu-se aos conselhos científicos, com a EPA desalojando bolsistas acadêmicos, às palavras, com o veto burocrático a termos como “science-based” em minutas do CDC, e à própria comunicação de risco, com a mão política pesando sobre relatórios na pandemia. Na universidade, a combinação de ordens regulatórias, ameaças a vistos estudantis em cursos remotos e a paranoia do China Initiative produziu um efeito resfriador que se mede em colaborações interrompidas, talentos avessos ao ambiente e projetos adiados, o tipo de dano que não aparece em planilhas, mas corrói gerações.
O segundo mandato, por sua vez, abandonou o pudor. Ao mesmo tempo em que colocava Kennedy Jr., Bhattacharya, Makary, Means e Weldon no centro do tabuleiro, a administração acionou as alavancas que regem o fluxo sanguíneo da ciência. Encerrar de uma vez 22 projetos de vacinas de mRNA e redirecionar cerca de meio bilhão de dólares não é uma mudança de ênfase tecnológica: é amputar a plataforma que encurtou ciclos de resposta a patógenos e que se consolidava como infraestrutura de preparo pandêmico. Impor um teto uniforme de 15% aos custos indiretos dos auxílios do NIH não é cortar gordura: é esvaziar a logística que permite que o gasto em reagentes e bolsas exista. E quando a tesouraria segura bilhões já apropriados pelo Congresso e rescinde auxílios em massa até que tribunais e órgãos de controle chamem o golpe pelo nome, não estamos diante de uma divergência administrativa, mas de uma tática deliberada para refazer, sem debate público, o mapa do conhecimento. Se o governo não dobra as instituições pela nomeação, tenta dobrá-las pelo orçamento.
O papel da mídia
Nesse cenário, a mídia tem uma responsabilidade que, muitas vezes, abdicou de exercer. Ao simetrizar desiguais, colocando um infectologista com décadas de ensaios clínicos frente a um polemista antivacina, ou a teoria da evolução frente ao design inteligente, o jornalismo fabrica uma balança que não mede nada. Ao noticiar cortes em mRNA como readequação de portfólio, sem explicar o papel sistêmico da plataforma na prontidão sanitária, e ao ecoar ataques a custos indiretos universitários sem dizer ao leitor que é ali que se paga o gerador que mantém um freezer de -80 ºC durante um blecaute, a imprensa não informa: desorienta.
É compreensível que um telejornal busque conflito; é imperdoável que renuncie à hierarquia das evidências. O dever público do jornalismo, quando a política sequestra a linguagem da ciência, é explicar como um consenso se constrói, por que ele é robusto ainda que provisório, quais são as estratégias usuais de fabricação da dúvida e, sobretudo, onde o dinheiro entra e sai, porque a anticiência se converte em política de Estado na contabilidade, não nas manchetes.
Lições para o Brasil
É tentador considerar anedótica a presença de criacionistas bem-vestidos e evangelistas metabólicos nas margens do poder. Mas a sociologia da ciência ensina que os símbolos importam. Quando a pasta da Educação abriga patrocinadores do design inteligente, quando a Saúde institucionaliza o ceticismo vacinal em cargos de comando e quando a NOAA aceita uma rota de furacão redesenhada a caneta, o recado aos jovens cientistas é que fidelidade doutrinária rende mais que métrica experimental. A partir daí, outras negações ganham lastro, do clima às vacinas, e a esfera pública se torna um mercado de ruídos onde qualquer narrativa vale o mesmo que um corpo de evidência.
Há quem responda que eleições têm consequências. E têm: inclusive a de se escolher governantes que respeitam os limites entre dissenso político e método científico. A ciência não é um pacote de políticas para trocar a cada quadriênio; é a infraestrutura que nos permite discordar com qualidade. Proibir palavras, reescrever relatórios, trucidar conselhos, asfixiar universidades e descontinuar plataformas críticas não é governar de modo distinto: é diminuir a capacidade de uma sociedade de se conhecer e de se defender.
Para o Brasil, a lição é direta. Cortes erráticos, alternância entre voluntarismo e austeridade e o impulso de equilibrar currículos de ciências com catecismos travestidos de pensamento crítico produziram, aqui, resultados reconhecíveis: laboratórios descontinuados, talento exilado, atrasos em transferência de tecnologia.
O que as gestões Trump evidenciam é o mecanismo: nomeações hostis que deslocam a perícia, conselhos reconfigurados para domesticar a crítica, manipulação de linguagem e dados para confundir o público e, no fim, o torniquete orçamentário sobre universidades e agências. Se nossa imprensa tratar isso como choque de opiniões, repetiremos o erro.
Narrar a ciência na escala de seus riscos sociais, abandonar o fetiche do equilíbrio aritmético, explicar como se constrói um consenso e seguir o dinheiro é o antídoto possível.
O restante é ruído.
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Fabiano B. Menegidio é doutor em Biotecnologia e atua como pesquisador na área de Bioinformática. Professor universitário, desenvolve estudos interdisciplinares envolvendo genômica, metagenômica e ciência de dados. Coordena projetos em biotecnologia e engenharia biomédica com enfoque em inovação científica.
