Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

“Todos os mortos” aborda como o racismo, seus silêncios e angústias sobrevivem há mais de um século no Brasil

(Foto: Divulgação 70ª Berlinale)

Cerca de 55% da população brasileira é composta por pretos e pardos, que correspondem ao grupo com maior taxa de analfabetismo, salários mais baixos e maior suscetibilidade ao desemprego e à violência no país. Os dados do IBGE resumem o fio condutor de Todos os Mortos. Exibido na 70ª Berlinale, que aconteceu na capital alemã entre 20 de fevereiro e 1º de março, o filme foi o único representante brasileiro na mostra competitiva entre dezenove obras nacionais.

Em uma das suas cinco sessões, as 589 poltronas do CinemaxX de Potsdamer Platz, no centro de Berlim, estavam todas ocupadas. As duas horas de filme pareceram voar, embaladas por personagens que sussurravam verdades que não podiam ser ditas e que têm sido, até hoje, mal contadas ou silenciadas sobre negros e racismo no Brasil.

Os diretores Caetano Gotardo e Marco Dutra, conhecidos por trabalhos essencialmente provocativos e engajados, chamaram a atenção dos organizadores da Berlinale, que respeita bastante esse tipo de produção, e do público que acompanha o evento. Em Potsdamer Platz, além do brasilianisches Portugiesisch, ouvi muito português europeu, alemão e inglês, além de francês e espanhol.

Ana e Iná

A história é contada a partir da personagem Ana Soares (Carolina Bianchi), que, junto com a mãe idosa, vive em uma casa de classe média na São Paulo do final do século XIX. Atormentada por visões e vozes de negros escravos que estão mortos, Ana metaforiza os ecos da escravidão e suas sequelas, até hoje mal resolvidas na história do Brasil.

O contraponto da personagem é Iná Nascimento (Mawusi Tulani), uma ex-escrava que se vê pressionada pela freira Maria (Clarissa Kiste), irmã de Ana, a trabalhar nos afazeres domésticos da casa das Soares. Maria impõe a Iná que use sua fé ancestral trazida da África, distorcendo-a, para ajudar Ana a esquecer suas visões. Entretanto, convicta da sua religiosidade, Iná não leva adiante a proposta da freira.

Com o filho João (Agyei Augusto), a ex-escrava deixa a casa das Soares e vai batalhar a vida nos subempregos que restam para a população negra da São Paulo na virada do século XIX para o XX. Está pronto o cenário para o desfile de mais dois personagens sutis, mas extremamente marcantes da história: o menino João e a cidade grande.

Do século XIX ao século XXI

Por meio da criança e da metrópole, o filme estabelece um profícuo diálogo entre a época em que se desenvolve o enredo e a atualidade. Fica ainda mais claro o interesse do filme em problematizar as raízes do racismo, da intolerância religiosa e de preconceitos até hoje arraigados, ainda que muitas vezes silenciados, na sociedade brasileira.

Ao tocar nessa questão, a obra explora ainda um tema pouco recorrente no cinema, na teledramaturgia e mesmo na imprensa nacional: o que aconteceu com os negros após a libertação dos escravos, em 1888, e quais caminhos eles seguiram para sobreviver e resistir na (re)construção de sua identidade?

Em uma cena comovente, o menino João se esforça para recitar ancestrais versos africanos em uma praça da São Paulo dos dias de hoje, um trecho que ilumina as contradições e a resistência do negro no Brasil. Passagens desse tipo, somadas a personagens vividos por atores brilhantes, fazem de Todos os Mortos um filme engajado, que tem o mérito de discutir como o racismo, seus silêncios e angústias sobrevivem mais de 130 anos depois da abolição da escravatura.

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Enio Moraes Júnior é jornalista e professor brasileiro. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (Brasil), vive em Berlim desde 2017.