
(Foto: Magda Ehlers/Pexels)
O podcast pode ser definido como um desdobramento e ramificação do rádio, tradicional veículo de comunicação, por se tratar de um produto sonoro. Todavia, é ouvido e produzido sob demanda, o que indica uma possível tendência da era da informação: uma vez que tenho acesso a um conteúdo vasto, procuro e escolho o que consumir. Dentro desse contexto de múltiplas temáticas e formatos relacionados a um produto sonoro, surge o gênero “true crime” que, em tradução livre, significa “crimes reais”.
Um podcast de true crime narra histórias de crimes reais, com ou sem desfechos satisfatórios. A construção da narrativa se apoia em efeitos sonoros especiais e um roteiro com diversidade de fontes e riqueza de detalhes, para atrair e entreter o público. “O Caso Evandro” e a “Mulher da Casa Abandonada” são exemplos de podcasts do gênero que repercutiram nos últimos anos.
Ambas as produções citadas foram produzidas por jornalistas e são investigações e narrações detalhadas de histórias mal contadas e que despertam a curiosidade do público. Contudo, questiona-se: qual é o limite entre a produção jornalística investigativa, que cumpre um papel social, e a espetacularização do crime e da dor, que não gera reflexão crítica e apenas promove o entretenimento?
Adorno e Horkheimer, no texto “A Indústria Cultural: O esclarecimento como mistificação das massas”, pontuam que “quando um ramo artístico segue a mesma receita usada por outro muito afastado dele quanto aos recursos e ao conteúdo, […] o recurso aos desejos espontâneos do público torna-se uma desculpa esfarrapada”. Os programas policiais, por exemplo, acompanham crimes e contam histórias de suspeitos. Para além da discussão se esse gênero pode ser considerado jornalismo, o formato se sustentou por muito tempo e ainda se sustenta, graças à audiência do público. Os podcasts de true crime, apesar de diferentes em sua forma, são similares quanto ao conteúdo e atendem ao mesmo desejo do público e a curiosidade do espectador em entender um caso criminal, mesmo que em nada afete sua vida.
Os podcasts de true crime contam histórias diferentes, mas perpetuam a mesma lógica apontada por Adorno e Horkheimer de que, dentro da Indústria Cultural, os produtos midiáticos seguem formas semelhantes para agradar o maior número de pessoas possível. Para os autores, “ao escutar a música ligeira, o ouvido treinado é perfeitamente capaz, desde os primeiros compassos, de adivinhar o desenvolvimento do tema e sente-se feliz quando ele tem lugar como previsto”. Apesar dos desdobramentos dos crimes serem distintos e, em sua maioria, chocantes, a imprevisibilidade do formato pode ser considerada um lugar previsto. Pode-se dizer que “consumo podcasts dessa temática para ser surpreendido e me sinto bem quando isso acontece”, parafraseando os autores.
Esse ponto também se relaciona com outro aspecto defendido por Adorno e Horkheimer, de que a mídia é instrumentalizada, inclusive, para diversão. Eles afirmam que “a obscuridade do cinema oferece à dona de casa, apesar dos filmes destinados a integrá-la, um refúgio onde ela possa passar algumas horas sem controle”. Ao consumir podcasts de crime, o indivíduo é entretido e fica alheio à própria realidade, se a história narrada não gera pensamento crítico e transformação social.
Em vista desses argumentos, o jornalismo está sujeito a espetacularizar histórias de crimes reais, por meio do formato e gênero indicados, visando apenas o lucro, transformando a notícia em mercadoria e criando consumidores que aceitam a realidade como está, sem pensar nas transformações sociais necessárias que um caso criminal denuncia. E, ainda, o jornalismo segue essa lógica oferecendo entretenimento padronizado e previsível em sua forma. Adorno e Horkheimer chamam a atenção para o fenômeno: “Os dirigentes [da cultura de massas] não estão mais sequer muito interessados em encobrir os produtos idênticos. Seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se confessa ao público”.
Contudo, as produções dos podcasts de true crime podem partir para o caminho oposto, superando a lógica da mercadoria. As produções do gênero podem trazer luz a temas sensíveis e a legislação pouco conhecida pela população. Um caso de feminicídio pode instruir o público sobre como buscar ajuda perante situações de violência contra a mulher. O podcast “A mulher da casa abandonada”, citado no início do texto, trata de um caso de submissão de uma pessoa à privação de liberdade e a condições análogas a escravidão. A complexidade da história pode ser uma oportunidade para explicar melhor as determinações legais sobre esse tipo de crime e os procedimentos para denúncia, além de trazer à tona outros casos. Assim, o jornalismo cumpre sua função social, denunciando injustiças e promovendo o bem-estar social. A partir disso, é possível questionar: o podcast em análise apenas entreteu o público, resultando, inclusive, em uma série, anos depois do lançamento do produto sonoro, ou, de fato, promoveu um debate público sobre crimes de trabalho?
Logo, fica claro que, apesar de “a cultura contemporânea conferir a tudo um ar de semelhança” e que “a racionalidade técnica é a racionalidade da própria dominação”, o jornalismo, dentro de seus diferentes gêneros e formatos, pode encontrar maneiras de não seguir a lógica do capital, ainda que inserido no sistema capitalista. Se criar narrativas envolventes chama a atenção do público, elas podem apontar um caminho para a informação nos mais diferentes gêneros e formatos. Veículos alternativos já têm surgido para denunciar aquilo que a grande mídia, por interesse próprio, muitas vezes, não faz, ainda que também dependem, em algum nível, de recurso financeiro. O desafio da profissão é: tem sido de interesse do jornalismo servir ao público, por meio de programas que geram reflexão crítica e transformação social, ou à indústria cultural, que visa apenas o lucro? Os podcasts de true crime e todos os outros formatos jornalísticos servirão à lógica do mercado e espetacularização ao invés de cumprir o papel do jornalismo investigativo de denunciar problemas sociais e trazer soluções? A reflexão crítica nos ajuda a repensar a profissão e, se, de fato, o problema são as mudanças sociais e tecnológicas.
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Amanda Silva Lima é graduanda em Jornalismo pela Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design (FAAC), da Unesp Bauru. Estagiária na AletheiaFact.Org, organização de terceiro setor que atua com fact-checking e alfabetização midiática. Iniciante à pesquisa com estudos sobre uso de Inteligência Artificial em produções sonoras jornalísticas.
