Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Como era ser fotógrafa na ditadura

Conheci o Marcos Faerman (Marcão) em 1976, em São Paulo, o grande jornalista gaúcho do Jornal da Tarde e fundador do Versus, jornal mensal da imprensa alternativa (“nanica”). O jornal foi fundado com o ideal de ser um canal que apresentasse a voz contra a repressão através da cultura e dos artistas das ditaduras do Brasil e da América Latina, para nós quase desconhecida naquela época.

Eu era estudante de jornalismo e encontrei o Marcão na redacão do Versus, numa velha casa no bairro de Pinheiros. Mostrei minhas fotos p/b para ele e fui convidada para participar da reunião de pauta do Versus no dia seguinte. Nesta reunião conheci os editores e colaboradores do jornal. Dele participavam os jovens e brilhantes jornalistas Caco Barcellos, Luiz Egypto, Helio Goldstein, Omar de Barros Filho (Matico), Toninho Mendes, o artista gráfico Carlos Clémen, os desenhistas Glauco, Angeli, Laerte, Luiz Gê, irmãos Caruso e muitos outros… O jornal fazia sucesso porque reunia essa pequena parcela do jornalismo brasileiro, pessoas que tinham ideais de mudança na construção de um Brasil melhor, mais livre, que queriam ter voz e liberdade de expressão em plena ditadura militar. Éramos corajosos…

O Versus foi o grande pontapé para minha carreira de fotógrafa profissional e trouxe um novo rumo para a minha vida. Com o aprendizado e ajuda dos editores e amigos queridos, logo me tornei fotógrafa oficial, editora de fotografia e depois comecei a trabalhar também para a grande imprensa.

A ditadura no Brasil não oferecia oportunidades aos jovens. Sair do país era muito difícil e caro, a educação era restrita, a comunicação era precária, estávamos bem isolados de tudo e de todos. Só a classe dominante, rica, podia estudar e viajar, e acho que por isso o jornal fazia muito sucesso entre estudantes e intelectuais de esquerda.

As ideias brilhantes do Marcão, seus contatos com grandes escritores latino-americanos e a edição gráfica primorosa do Versus nos colocavam em contato intelectual com os grandes escritores e artistas da América Latina, como Mario Vargas Lhosa, Gabriel García Marquez, Juan Rulfo, Violeta Parra, Victor Jara e muitos outros.

Publicávamos ensaios que ninguém publicava, sobre prostitutas, crianças pobres de periferia, repressão, reivindicações de mulheres, indígenas, personagens da esquerda, escritores malditos, Movimento Negro Unificado (havia uma sessão no jornal editada por intelectuais e jornalistas negros liderada pelos jornalistas Hamilton Cardoso e Neusa Maria Pereira). Era um aprendizado diário escutar estas pessoas que não tinham voz na grande imprensa e tentar dar voz e uma cara para elas através do jornal.

Valores éticos

Numa segunda fase, depois de muita polêmica, a equipe do Versus se dividiu e começou a militar na prática contra a ditadura após receber em seus quadros pessoas da Convergência Socialista, a ala trotskista de esquerda, que deu um novo rumo ao jornal. Começou a publicar textos mais políticos, apoiar as greves do ABC quando Lula era ainda o diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de S. Bernado do Campo, e passou a ser distribuído de graça nas portas das fábricas, ficando mais popular.

Com essa ação mais agressiva, muitas vezes eu chegava no jornal e não encontrava ninguém. A maioria havia sido presa… Com a instituição do AI-5 (a polícia podia prender as pessoas sem mandado de prisão), os policiais prendiam os jornalistas de plantão e levavam embora a tiragem do jornal…

Os jornalistas e intelectuais de esquerda naquela época foram muitas vezes perseguidos, presos, torturados ou mortos, como foi o caso do jornalista Vladimir Herzog, diretor da TV Cultura.

Eu cheguei a esconder em casa a esposa e filhas do Matico, um dos editores do Versus. Muitos anos depois conheci uma moça que namorava um policial naquela época e ela me confidenciou que o namorado era o responsável por vigiar o meu pequeno apartamento… Éramos muito ingênuos.

A censura prévia fazia parte do dia-a-dia dos jornais, que eram obrigados a ter um censor de plantão dentro das redações. Já sabíamos que, quando um jornal publicava receitas de doces, naquele espaço havia um texto cortado, censurado. No Versus não era diferente. Tínhamos um censor de plantão que lia e queria mudar tudo que os jornalistas escreviam.

Eu era fotógrafa freelancer e, quando fotografava os comícios, greves e manifestações, oferecia também as fotos para os outros jornais alternativos daquela época, o Em Tempo, o Movimento e o jornal do novo partido que acabara de ser criado, o Jornal do PT.

Acreditávamos que o novo partido iria revolucionar o Brasil, como revolucionou, e trabalhávamos para que isso acontecesse. Existia no ar uma crença verdadeira de mudança, os jovens achavam que poderiam virar a mesa junto com os trabalhadores. A ditadura era forte, mas a gente tinha ânsias de democracia e acho que isso fez o Brasil mudar. Apesar da repressão forte, os jovens e o povo se exprimiam nas manifestações do Custo de Vida, Contra a Carestia, por melhores condições aos negros, mulheres, até culminar com as grandes manifestações das Diretas Já, que abrandaram a ditadura e levaram o país aos poucos para as eleições diretas e para a democracia.

Hoje, olhando para trás, fico feliz de ter participado desta transição. Vejo um Brasil melhor embora muito tenha que ser feito ainda, principalmente no que diz respeito à ecologia. Ainda viajo muito fotografando lugares remotos que estavam esquecidos, fora dos eixos das grandes cidades, como nas aldeias indígenas, e tenho presenciado uma grande mudança no acesso à educação, saúde, aos meios de comunicação, energia, etc… Os pobres, negros e povos indígenas estão aos poucos sendo integrados e reconhecidos como parte da sociedade brasileira. Estão virando cidadãos, mostrando a cara e suas culturas diferentes… Isso é uma grande mudança, vai aos poucos fazendo a diferença.

Na ditadura sabíamos os nomes de quem era linha dura e de direita, e acho que conhecíamos melhor nossos inimigos que diziam representar o povo. Hoje este quadro é mais nebuloso… Alguns dos nossos maiores inimigos estão ainda infiltrados na politica, dizendo representar o povo, são os maus políticos e funcionários públicos corruptos. Eles estão minando o dinheiro público com notas frias e empresas fantasmas. É o grande problema que o Brasil continua ainda enfrentando: a falta de valores éticos, essa herança que veio com os degradados portugueses na colonização. Por outro lado, os nossos jovens vindo de classes mais desfavorecidas estão estudando cada vez mais, são honestos e querem fazer a diferença. Estão ocupando espaços em todos os níveis de trabalho e aos poucos vão mudar este quadro, vão substituir os corruptos e transformar o Brasil política e ecologicamente no nosso tão sonhado país do futuro.

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Rosa Gauditano é fotógrafa