
Arroio do meio (RS) / Bairro de navegantes, próximo ao rio Taquari, as residências foram totalmente destruídas pela última enchente. (Foto: Joédson Alves/Agência Brasil)
Um ano se passou desde que as enchentes no Rio Grande do Sul dominaram a agenda midiática no Brasil e, em certa escala, no mundo. Considerada pelo poder público como o “maior desastre ambiental do estado”, as primeiras semanas da tragédia mobilizaram o jornalismo em torno de Porto Alegre, do Vale do Taquari e dos 471 municípios atingidos pelas tempestades, ao todo afetando 2,3 milhões de pessoas; foram 184 mortos e 25 pessoas ainda estão desaparecidas. Na última semana, o estado voltou a sofrer com fortes temporais, alagamentos e a permanência da inoperância do poder público.
Se por um lado a imprensa do país foi intensamente mobilizada durante as primeiras semanas do acontecimento em 2024; por outro, o que se viu e ainda se vê é uma cobertura rasa, pontual e insuficiente. Nos meses seguintes às enchentes, organizações, instituições de pesquisa e atores ligados ao monitoramento ambiental e à comunicação questionaram e vêm questionando os padrões empregados pelo jornalismo tradicional na cobertura de desastres climáticos. As reflexões apontam como a abordagem predominantemente reativa e espetacularizada contribui para a manutenção do status quo que desresponsabiliza o poder público e econômico por tragédias ambientais.
E há um modus operandi nesse sentido. Como evidencia a pesquisadora Márcia Franz Amaral, o jornalismo hegemônico tende a atuar em modo de “cobertura de catástrofe”, no começo, com forte presença nos noticiários e grande mobilização de repórteres nas áreas afetadas. Já nas semanas seguintes, a tragédia deixa de ser manchete e entra em um período de silêncio midiático, mesmo com milhares de desabrigados aguardando soluções e impactos socioambientais em andamento.
Muitas vezes o assunto só volta a ganhar alguma visibilidade em marcos específicos (como no aniversário de um ano do evento ou em novas tragédias similares), ficando esquecido no intervalo. Estudos internacionais mostram que esse comportamento não é exclusividade do Brasil: por exemplo, a atenção global ao terremoto do Nepal em 2015 durou cerca de duas semanas antes de a imprensa mundial “seguir em frente” para novas histórias.
Mesmo desastres com altíssimo número de vítimas tendem a perder espaço rapidamente – fenômeno descrito por Susan D. Moeller (1999) como “fadiga da compaixão” ou “fadiga da mídia”, no qual a intensidade inicial dá lugar à indiferença, enquanto as necessidades das populações afetadas continuam por anos.
Márcia Franz Amaral, Eloisa Beling Loose e Ilza Maria Tourinho Girardi têm contribuído para estudos de jornalismo ambiental e cobertura das mudanças climáticas, especialmente a partir do Rio Grande do Sul. As autoras defendem um jornalismo climático mais crítico e contextualizado, no qual o papel da imprensa também é de agendar o debate público e influenciar políticas ambientais, descentralizando a discussão climática para além dos eventos extremos em si.
O que se perdeu foi o foco no processo, na reconstrução, na memória. O problema não é a ausência da pauta ambiental, mas sua dispersão e fragmentação em eventos desconectados, quase como catástrofes episódicas e isoladas. Nesse sentido, o desvio não é só editorial — ele é político e epistêmico. Fala-se de clima, mas raramente de clima como estrutura. E menos ainda como responsabilidade coletiva. (Amaral; Pozzobon, 2013)
As autoras ressaltam que, no caso das enchentes de 2024, a atenção midiática durou muito menos do que os impactos do desastre em si. “O desastre é foco de atenção midiática por um período muito aquém de sua existência, com lentes que o reduzem a um evento”, afirmam, defendendo a ampliação dessas coberturas.
Importante pontuar que o acontecimento no Rio Grande do Sul foi agravado pela recorrência cada vez maior de eventos climáticos extremos, em intervalos cada vez mais curtos de tempo entre eles. E não é preciso isolar o fenômeno, diversos estados vem passando por situações semelhantes desde o ano passado. Mesmo diante desse contexto, o jornalismo ainda não foi capaz de alterar o padrão da cobertura jornalística sobre riscos climáticos. O que será necessário para isso acontecer? É possivel pensar a forma como a imprensa investiga (ou não) a responsabilidade estrutural, de como cobre a política ambiental, de como acompanhar os efeitos da destruição a longo prazo?
O que se viu e se vê é um jornalismo tradicional marcado por três vícios: o jornalismo de depoimento trágico (centrado em vítimas e perdas individuais); o jornalismo de serviço emergencial (mapa de abrigos, previsão do tempo) e o jornalismo declaratório, dependente de autoridades e especialistas, sem análise crítica nem disputa de narrativas.
É ainda necessário pontuar que na esfera pública digital, o maniqueísmo ganha potência. A pesquisadora Talita Gantus de Oliveira critica a abordagem da imprensa ao chamar esses fenômenos de “naturais”, ou seja, quando há um reforço e culpabilização da natureza ocultando a responsabilidade de atores que promovem a segregação espacial, como o poder público e o mercado imobiliário. Além de questões de desigualdade socioeconômica.
“A desnaturalização dos desastres comumente chamados de naturais traz consigo uma mudança de paradigma. Afinal, os desastres urbanos resultam da combinação entre eventos climáticos extremos e um modelo de urbanização antiecológico e desigual”, destaca Oliveira, reforçando ainda que enquanto se mantiver, no senso comum e nas notícias veiculadas pela mídia, a premissa de que os desastres são naturais, não avançaremos nas políticas antecipadas de prevenção e de adaptação climática.
Uma questão para pensar nesse ponto é: a quem serve o jornalismo que não é crítico, não reivindica e acompanha o poder público em acontecimentos de grande impacto socioambiental? A quem serve o jornalismo que está à mercê da factualidade de eventos pontuais, de um ciclo de atenção midiática perene e reativo?
Como consequência, o modo reativo do jornalismo que cobre fenômenos ambientais corrobora a “naturalização” dos desastres como um evento espetacularizado, isolado e passageiro, quase fatalista, desconectado de causas estruturais. Ao delimitar o desastre estritamente no tempo (durante a crise) e no espaço (apenas no local imediato), a cobertura deixa de explorar fatores externos e responsabilidades mais amplas.
No caso do rompimento da barragem da tragédia de Mariana, em 2015, observa-se exatamente esse efeito de enquadramento: a mídia tendia a apresentar o ocorrido como uma fatalidade circunscrita, em vez de discutir falhas regulatórias, responsabilidade das mineradoras ou políticas de reparação de longo prazo.
Há uma lacuna no jornalismo tradicional em cobrir o acontecimento longitudinalmente, assim como ele é: complexo em processos e estruturado.
É preciso acompanhar as etapas de prevenção, socorro, reconstrução e apuração de responsabilidades mesmo após o fim do interesse inicial, além de fiscalizar a atuação do poder público. Quando a imprensa deixa de cobrar e monitorar, abre-se espaço para a inércia governamental.
Somente com um jornalismo de cobertura local, contínua e contextualizada – que acompanhe tanto a recuperação das comunidades quanto as medidas estruturais de adaptação climática – é possível transformar uma tragédia em aprendizado e pressão por mudanças.
Publicado originalmente em objETHOS.
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Renatha Giordani é Jornalista, doutoranda do PPGJor/UFSC e pesquisadora do objETHOS