Quinta-feira, 6 de novembro de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1363

Reflexões sobre jornalismo e violência no Brasil

(Foto: Marco Bianchetti/Unsplash)

Nos últimos nove anos, o Brasil registrou uma média de 40 mil homicídios. Apenas um a cada três casos tem o autor identificado e denunciado. Os dados foram divulgados na pesquisa “Onde Mora a Impunidade?”, publicada na última semana pelo Instituto Sou da Paz, que apresenta os dados de 2023. No país, o número exato é de que apenas 36% dos crimes são elucidados, um ciclo que gera impunidade, falta de credibilidade nas instituições públicas, lentidão nos sistemas de segurança e aumento da violência por parte dos linchamentos sociais.

O relatório aponta um levantamento com os dados de 17 estados. Outros dez estados enviaram dados inconclusivos e não foi possível realizar o mapeamento. O Distrito Federal aparece com 96% de resoluções e registra o maior indicador da série, enquanto a Bahia é o estado com a menor taxa: apenas 13% dos casos são solucionados. A pesquisa foi realizada com base nos dados fornecidos pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Justiça dos estados, evidenciando a fragmentação das informações. Isso porque o país ainda não possui um Indicador Nacional de Esclarecimento de Homicídios.

Em entrevista ao podcast Café da Manhã, da Folha de S.Paulo, a advogada e socióloga Carolina Ricardo, diretora executiva do Instituto Sou da Paz, destaca que a ausência de esclarecimentos nos casos envolvendo homicídios traz consequências sociais graves:

“Primeiro, a população passa a ter uma grande desconfiança da justiça e das instituições de segurança pública. Se eu não tenho o crime de assassinato resolvido pelo Estado, em quem eu vou acreditar, né? E, se essa população não acredita, não confia na justiça, ela vai buscar resolver de outras formas ou resolver com as próprias mãos. E aí a gente tem desde questões de linchamento, por exemplo, ou então outras formas de resolver o conflito. E aí a gente tem, por exemplo, o fortalecimento do crime organizado, que muitas vezes acaba sendo responsável por […] colocar regras em determinados territórios. Quando o Estado se faz ausente, a gente também fortalece o crime organizado, na medida em que o crime organizado usa o assassinato como ferramenta de controle”.

No livro Sobre a Violência, de Hannah Arendt (2022), a autora reflete sobre as formas de sistematização da violência na sociedade e destaca que a fragmentação das instituições e a falta de responsabilização social acabam por estabelecer formas de dominação. A autora afirma: “[…] a burocracia, ou domínio de um sistema intrincado de departamentos nos quais nenhum homem, nem um único nem os melhores, nem a minoria nem a maioria, pode ser tomado como responsável e que deveria mais propriamente chamar-se domínio de Ninguém” (p. 45).

A ausência de responsabilidade das instituições e das decisões sociais, a divisão dos processos e da construção da vida em sociedade, a falta de transparência do governo, e a ausência de uma estrutura em que o indivíduo se responsabilize por suas decisões e escolhas constituem uma forma de dominação social. A dominação ocorre na falta de controle social.

Essa dominação da violência também está refletida nos indicadores sociais. Segundo a pesquisa, 22% das vítimas têm entre 18 e 24 anos e 16% têm entre 25 e 29 anos. Em relação à raça, dos 26 estados, apenas dois (Acre e Piauí) registram os dados; a maior parte das vítimas é negra. “A escassez e a baixa qualidade dos dados dificultam ter uma visão geral do cenário, o que impacta na formulação de diagnósticos e políticas públicas eficazes para enfrentar a violência”, destaca o instituto.

O que é a violência?

Em entrevista para o canal do YouTube Grupo Autêntica, a filósofa Marilena Chauí define a violência como “toda forma de ação, pensamento e sentimento que reduz uma outra pessoa à condição de uma coisa, quando, portanto, o outro não é visto como uma pessoa, mas como uma coisa que eu manipulo. A violência é a maneira pela qual formas de opressão, dominação e exclusão se realizam. Ela não está circunscrita à criminalidade e à delinquência, ela é uma forma da relação social”.

Esse conceito, aplicado às relações de poder da mídia, também incide na forma como o jornalismo atua na cobertura de homicídios no Brasil. Ainda impera, nos conglomerados de comunicação do país, a cobertura focada na violência e no sensacionalismo, e não na busca por ajudar a investigar e elucidar os crimes. Ou seja, a lógica do mercado de notícias, em busca de sustentar a audiência, ainda se restringe a um fazer jornalístico que perpetua formas de exclusão e violência em relação aos crimes de homicídio.

Para Hannah Arendt (2022), é porque a violência pode ser instrumentalizada e potencializada por meio dos sistemas burocráticos que sua legitimidade pode ser assegurada. Se o jornalismo pode ser considerado um agente de transformação social, qual é o impacto dele na narrativa do combate à violência no Brasil? É preciso repensar as formas de cobertura jornalística e a maneira como a comunicação retrata a violência no país. A monopolização do poder midiático também constitui uma forma de violência, na medida em que deixa de agir como uma instância de combate e passa a atuar como uma instância que retrata a violência sem considerar os limites éticos dessa cobertura.

Referências

ARENDT, Hannah. Sobre a Violência. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022. 166 p. v. 1. E-book.

Publicado originalmente em objETHOS.

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Andressa Oliveira é Jornalista, mestre em letras e doutoranda em jornalismo (PPGJor/UFSC)