Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Infocracia e democracia

(Foto: StockSnap/ Pixabay)

Quando a informação é transformada na principal arma tanto em conflitos militares como em campanhas eleitorais e nas disputas econômicas, é sinal de que a sociedade está sendo submetida a um novo sistema regulador das relações sociais: a infocracia. 

O termo é novo e ainda definido de forma imprecisa, mas no essencial expressa o fato de que o poder do povo, a democracia, está sendo suplantado pelo poder da informação como paradigma da convivência social na era de avalancha informativa gerada pela internet.

Não se trata de uma substituição da democracia pela infocracia, mas da incorporação da informação como atributo decisivo na definição das formas de participação dos cidadãos. O princípio básico da representatividade popular como base da democracia continua de pé, mas para que ele seja efetivo na era digital, ele depende essencialmente da igualdade de acesso à informação. 

Trata-se de uma mudança transcendental nas relações humanas porque a manipulação de informações tornou-se a preocupação principal dos tomadores de decisões. Os políticos, por exemplo, passam a dar mais ênfase às estratégias de formatação das percepções individuais de seus eleitores ou simpatizantes do que à defesa de projetos e à negociação de alianças eleitorais. 

O filósofo e ensaísta sul-coreano Byung-Chul Han afirma num livro que será lançado em agosto próximo [1], que a democracia está sendo “engolida” pela infocracia. Ele garante que nós achamos que somos livres, mas na realidade toda a nossa vida está sendo registrada (em arquivos digitais) para que nosso comportamento possa ser psicopoliticamente controlado” [2].

A infocracia trata de um estágio anterior ao do exercício da vontade individual. É a etapa em que as pessoas absorvem dados da realidade, repassados pelo jornalismo, e os transformam em informações a partir das quais desenvolvem opiniões e assumem posicionamentos. Neste estágio, o fluxo de dados recebidos por um indivíduo passa a ser decisivo no processo de produção de conhecimento.

Tomando o processo eleitoral como metáfora para exemplificar as diferenças entre democracia e infocracia, o respeito do direito ao voto livre e secreto seria o paradigma da democracia, enquanto a infocracia está relacionada ao processo de persuasão psicológica, direta ou subliminar, a que estão sujeitos os eleitores antes de votar. 

Infocracia e eleições

A tomada de decisões, o foco central da democracia, perdeu relevância para a forma pela qual as pessoas formam opiniões que anteciparão suas resoluções.  Voltando à metáfora eleitoral, o voto como ritual democrático passa a ser uma consequência dos processos cognitivos [3] ligados à infocracia. Daí a enorme importância que esta última passa a ter em nossa via social, e em especial nas questões políticas. 

A relevância da infocracia é uma consequência direta das mudanças radicais ocorridas na forma como incorporamos novos dados, fatos e ideias à nossa mente. A maior de todas as transformações provocadas pelas novas tecnologias digitais de informação e comunicação é a avalancha informativa, que ampliou de forma fantástica o volume de notícias que passamos a receber através da internet.

O resultado inevitável desse tsunami informativo é o aumento das dúvidas e incertezas sobre a importância, pertinência, exatidão, atualidade e confiabilidade das notícias que recebemos através de veículos jornalísticos. As fake news (notícias falsas) são apenas um dos itens do complexo universo da desinformação pública, o ambiente mais procurado pelos agentes da infocracia, para tentar conquistar corações (as simpatias emocionais) e mentes (posicionamentos racionais) de pessoas vulneráveis à insegurança informativa. 

Como a maioria esmagadora dos habitantes deste planeta ainda se informa através da imprensa, o jornalismo passou a ser um protagonista essencial e insubstituível na formatação de opiniões que irão determinar decisões. Por isto a profissão tem hoje uma responsabilidade transcendental e altamente complexa no futuro da democracia na era digital. Não se trata mais de defender e promover um ritual, mas de intervir nos fatores que condicionam a tomada de decisões por parte dos indivíduos. 

O grande paradoxo é que as pessoas podem sentir-se livres para tomar decisões, mas podem estar partindo de motivações e posicionamentos induzidos de forma não democrática. As eleições brasileiras de 2018 foram consideradas livres e democráticas, mas hoje sabe-se que o resultado foi influenciado por uma cuidadosa estratégia de indução de opiniões e atitudes visando a eliminação de uma das candidaturas presidenciais.  A democracia acabou ofuscada pela infocracia.

A crise na Ucrânia é outro evento, entre muitos outros, que está mostrando como hoje já não se pode mais pensar em democracia sem levar em conta os procedimentos informáticos, que estão sendo utilizados. Na guerra, o lado anti-russo, liderado pelos Estados Unidos, explora o drama da população civil nas cidades atacadas como a principal arma para captar simpatias no resto do mundo e caracterizar o presidente russo, Wladimir Putin, como um personagem desprezível.  

Não é uma estratégia militar de defesa de territórios, mas uma batalha por simpatias humanas de pessoas que estão muito distantes do front de combates. A conquista de simpatias, através de mensagens informativas, é essencial para o êxito de manobras diplomáticas e financeiras transformadas na principal estratégia de neutralização da intervenção russa na Ucrânia. Conflitos como o da Ucrânia passam a ser travados no âmbito da infocracia, um terreno muito complexo, onde tudo ainda é muito novo.

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[1] O título do livro é Infocracy: Digitization and the Crisis of Democracy, e será publicado pela Polity Books, 80 páginas com versões impressas e ebook.

[2] Do original : “we imagine that we are free, but in reality our entire lives are recorded so that our behaviour might be psychopolitically controlled”.

[3] Um processo cognitivo ocorre quando alguém recebe uma notícia através de seus cinco sentidos humanos, gerando uma mensagem que vai para a memória de curto prazo da pessoa, onde o dado novo é comparado a outros que já estão armazenados na mente, gerando uma informação personalizada que alimentará a produção de conhecimento, na forma de opiniões e decisões. A explicação é bem mais complexa, mas a resumi drasticamente para tentar facilitar a compreensão.

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.