
(Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)
No debate público contemporâneo, especialmente nas mídias sociais, tem ganhado força uma narrativa peculiar, a de que o bolsonarismo transcendeu sua origem política e se transformou em uma categoria capaz de identificar e classificar comportamentos, valores e atitudes que independem de qualquer vínculo com Jair Bolsonaro. Segundo essa lógica, bastaria alguém manifestar preconceitos, negar evidências científicas ou defender posições autoritárias para ser automaticamente enquadrado como bolsonarista, ainda que essa pessoa jamais tenha votado no ex-presidente ou sequer simpatize com ele. Esse fenômeno discursivo, que circula amplamente em postagens, threads e debates online, merece ser problematizado.
A tentativa de definir o bolsonarismo como um conjunto fixo de comportamentos e valores que independem da figura do ex-presidente levanta questões fundamentais sobre a natureza dos fenômenos políticos contemporâneos e os limites da categorização ideológica. Ao propor que “ser bolsonarista” transcende o voto ou mesmo a simpatia pelo ex-presidente, cria-se um paradoxo conceitual que merece ser tensionado, pois, afinal, pode um movimento político existir de forma autônoma em relação ao seu protagonista? E, mais importante, quais são os riscos de expandir indefinidamente as fronteiras de uma identificação política até transformá-la em sinônimo de todo comportamento considerado retrógrado?
A lógica apresentada sugere que uma série de atitudes – homofobia, misoginia, fundamentalismo religioso, negacionismo científico, entre outras – seriam marcadores automáticos de bolsonarismo. Tal formulação, embora compreensível em um contexto de polarização extrema, opera uma inversão temporal problemática, já que trata fenômenos sociais preexistentes como se fossem criações ou propriedades exclusivas do bolsonarismo. O preconceito contra pessoas LGBTQIAPN+, o machismo estrutural, o fundamentalismo religioso e o racismo são feridas históricas da sociedade brasileira que antecedem em décadas, senão séculos, o surgimento de Bolsonaro como figura política relevante.
Essa genealogia importa, pois, ao atribuir ao bolsonarismo a paternidade de todos esses males sociais, corre-se o risco de absolver as estruturas históricas que os produziram e de simplificar a complexa rede de fatores que sustentam essas violências. O Brasil é misógino antes de Bolsonaro, é racista antes de Bolsonaro, é homofóbico antes de Bolsonaro. O que o fenômeno bolsonarista fez foi oferecer legitimação pública e articulação política a essas opressões, retirando-as temporariamente das zonas de constrangimento social em que vinham sendo, ainda que precariamente, contidas.
A questão se complica quando consideramos que muitas dessas atitudes não são exclusivas de um espectro político específico. A defesa da ditadura civil-militar de 1964, por exemplo, encontrou acolhida em setores militares e empresariais muito antes de Bolsonaro; o negacionismo científico tem raízes em movimentos antivacina e terraplanistas que atravessam fronteiras ideológicas; o fundamentalismo religioso é um fenômeno global que não pode ser reduzido a uma única expressão política nacional. Dessa maneira, transformar o bolsonarismo em uma categoria que absorve tudo isso é conceder a ele uma centralidade histórica que distorce a compreensão dos processos sociais.
Existe ainda um problema metodológico na construção dessa identidade por acumulação de características negativas. Se alguém é racista, homofóbico e negacionista, é automaticamente bolsonarista? E se essa pessoa compartilha dessas visões, mas defende pautas econômicas de esquerda? E se apoia o controle de armas, mas é fundamentalista religiosa? E se nega a ciência climática, mas defende políticas públicas robustas de saúde? A realidade social é mais complexa e contraditória do que permite um modelo que busca encaixar comportamentos diversos em uma única chave interpretativa.
Essa operação de identificação totalizante pode também servir a um propósito discursivo específico, isto é, a deslegitimação sumária de interlocutores. Ao estabelecer que determinados comportamentos equivalem a ser bolsonarista – e, portanto, a estar do “lado errado da história” –, dispensa-se o trabalho de compreender as origens e motivações dessas posições. O diagnóstico substitui o diálogo, e a classificação se torna um substituto conveniente para o debate.
É verdade que o bolsonarismo operou como um grande guarda-chuva que abrigou e articulou diversas formas de conservadorismo, autoritarismo e reacionarismo. Sua força política reside precisamente na capacidade de unificar setores que, embora compartilhassem certos valores, mantinham-se fragmentados. Bolsonaro foi eficaz em dar voz e organização a ressentimentos difusos, em transformar preconceitos privados em bandeiras públicas, em converter negacionismos dispersos em agenda política. Nesse sentido, o bolsonarismo é sim um fenômeno que precisa ser compreendido e combatido.
Contudo, reconhecer sua importância histórica não significa atribuir-lhe onipresença ou eternidade. O risco de substancializar o bolsonarismo – de tratá-lo como uma essência que pode existir independentemente de suas manifestações concretas e de seu contexto político específico – é duplo, haja vista que por um lado, superestima-se sua capacidade de permanência, por outro, subestima-se a complexidade dos problemas sociais que ele explora, mas não cria.
A democracia exige, de fato, que compreendamos que ideias têm consequências, mas exige também que sejamos precisos na caracterização dessas ideias e cautelosos na identificação de suas origens. Dizer que alguém que espalha fake news, é homofóbico e misógino “é, sim, bolsonarista”, mesmo que essa pessoa rejeite Bolsonaro, pode ser retoricamente satisfatório, porém, é analiticamente insuficiente, porquanto, essa pessoa pode ser simplesmente alguém que compartilha preconceitos arraigados em nossa cultura, que não desenvolveu pensamento crítico, que está inserida em redes de desinformação, que reproduz autoritarismo por razões que precedem e podem sobreviver ao fenômeno bolsonarista.
O grande desafio para a democracia brasileira não é apenas nomear corretamente seus adversários, mas compreender as condições sociais, culturais e econômicas que tornam possível a emergência e a persistência de movimentos autoritários. Bolsonaro não criou o Brasil que o elegeu, ele soube explorar fissuras e ressentimentos que já existiam. Seu eventual desaparecimento da cena política não significará o fim automático dessas fraturas.
Portanto, mais produtivo do que expandir a categoria bolsonarista até que ela englobe todo comportamento retrógrado seria aprofundar a compreensão dos diversos autoritarismos, fundamentalismos e preconceitos que atravessam a sociedade brasileira. Alguns deles encontraram no bolsonarismo uma expressão política conveniente, outros podem encontrar novas formas de articulação. A luta democrática exige não apenas identificar inimigos, mas compreender processos, disputar narrativas e construir alternativas que enderecem as causas profundas da intolerância e do autoritarismo, causas que são mais antigas, mais disseminadas e, portanto, mais desafiadoras do que um único fenômeno político, por mais devastador que ele tenha sido.
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Ramsés Albertoni é Professor de Artes, Pesquisador de Pós-doutorado em Artes (PPGCA-UFF), Doutor em Artes (PPGACL-UFJF), Pesquisador do Grupo de Pesquisa Arte & Democracia.
