Sunday, 13 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Surge uma liderança negra no Brasil?

(Foto: Câmara Legislativa)

Os grandes políticos de minha época, de direita ou esquerda, já se tornaram raros. As eleições de 2018 revelaram, juntando-se os eleitos com seus nomeados, a pior e mais lamentável safra de homens públicos. Figuras despreparadas, sem formação geral, a começar pelo ex-presidente Bolsonaro, beirando a ignorância ou com certa esperteza, mas em proveito próprio. As eleições de 2022 possibilitaram descartar uma parcela desses inúteis entre civis e militares, porém algumas dessas tristes figuras conseguiram sobreviver no Senado ou na Câmara dos Deputados.

E enquanto se decide a inelegibilidade do catastrófico presidente obcecado com a ideia de se tornar ditador e formar uma dinastia, é normal se imaginar com quem se poderá evitar o retorno da extrema direita.

A imprensa em geral, antes mesmo da decisão do TSE, já selou o caixão e fez o velório do “mito”, cuja morte política já não provoca mobilização nas ruas e nem mesmo uma motociata funerária.

Já se fala descaradamente nos seus sucessores. Será o ainda discreto Tarcísio de Freitas, eleito por Bolsonaro para lhe garantir uma importante base em São Paulo, caso conseguisse concretizar o golpe?

Será o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, ou será um de seus filhos ou sua esposa Michelle? A direita aceitará ser comandada por um candidato de extrema direita, depois da péssima experiência com Bolsonaro? E os líderes evangélicos por quanto venderão o apoio de seus cegos seguidores?

Do lado centro e esquerda, Lula conseguirá manter a mesma forma física para disputar uma nova eleição? Na hipótese afirmativa, sua política de conquistas sociais para o povo poderá lhe garantir uma reeleição.

Numa hipótese negativa em consequência do cansaço físico, o centro e a esquerda poderão ter problemas; Haddad e Marina já experimentaram e não deu certo.

Haverá, sem dúvida, o ministro Flávio Dino, cuja figura física e política vem ocupando todos os espaços. Porém, Dino já tem contra ele uma máquina azeitada, avaliada em 30%, os evangélicos.

Como resolver essa equação? Me veio a ideia acompanhando os debates da CPMI do 8 de janeiro. Em toda aquela confusão, se sobressai pela sua objetividade, lógica e linguagem, um tribuno, como há tempos não víamos: o deputado federal Henrique Vieira, do PSOL.

Na inquirição do terrorista George Washington, que pretendia fazer um atentado no aeroporto de Brasília, Henrique Vieira demonstrou humanidade, diante de um fanático candidato a criminoso, e manteve um discurso digno dos grande debates no Parlamento.

Não sei se outros colegas jornalistas tiveram a mesma reação, mas Vieira se sobressaiu e me surpreendeu por propor ao UOL, numa entrevista, aquilo que venho denunciando e pedindo desde o começo dessa relação impura dos evangélicos com a extrema direita: uma possível investigação dos pastores responsáveis pela utilização de suas igrejas como focos golpistas contra a democracia.

“Todos os grupos e pessoas golpistas, que tiveram relação com a tentativa de golpe, devem ser investigados”, disse Vieira, “e não há uma excepcionalidade pelo fato de serem religiosos”. Era o que precisava ser dito, mas que muitos não ousavam.

“A extrema direita política brasileira procurou e concluiu uma aliança com a extrema direita religiosa e capturou a narrativa simbólica do cristianismo para transformá-lo num movimento de massas, colocando-o num patamar de articulação política, financeira, econômica, digital e institucional, transformando-o num projeto de poder com vocação autoritária. É o momento de separar o joio do trigo”.

Para Vieira, os valores morais da extrema direita podem se relacionar com os valores morais de um fundamentalismo religioso, no que concerne ao autoritarismo, e estão naquela frase bolsonarista, “Deus acima de tudo”.

Esse movimento político-religioso de extrema direita é igual ao que ocorre nos EUA, motivador do ataque ao Capitólio, e implica na mobilização de um planejamento digital, de um financiamento, missões religiosas, congressos, conferências, publicações teológicas e livros. Trata-se de um movimento global, diz Vieira.

O deputado quer definir, na CPMI, os requerimentos e o plano de trabalho para as convocações de pessoas que disseram: “a minha igreja pagou, organizou ônibus e me estimulou para ir a Brasília”, para saber quem são os pastores e as igrejas envolvidas.”

Vieira tem condições para fazer isso, sem ser criticado por promover perseguição, por ser ele mesmo pastor evangélico, que se licenciou da igreja depois de eleito. E tem mais, ele é negro, no Brasil, onde, ao contrário dos EUA, os negros têm pouca representatividade política.

Por isso, ao imaginar que figuras poderão surgir nestes anos, depois do fracasso golpista e do retorno de Lula, talvez não seja exagero citar o surgimento da liderança negra e evangélica, mas de esquerda, de Henrique Vieira. Seria uma maneira de se contornar ou de se acabar com o desvio religioso fundamentalista de extrema direita.

E na hipótese de se pensar num presidente negro.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.