O avanço da inteligência artificial (IA) trouxe à tona questões profundas sobre o papel dessa tecnologia na sociedade, os limites da consciência e o que significa ser humano. Conceitos filosóficos e dilemas éticos que antes pertenciam apenas à ficção científica agora se aproximam cada vez mais do nosso cotidiano, desafiando-nos a reconsiderar nossa própria natureza e os limites que impomos às máquinas.
Com o medo de sermos substituídos, somos instigados a refletir até que ponto as máquinas podem desenvolver características que antes considerávamos exclusivamente humanas, como a capacidade de pensar, sentir, tomar decisões morais e estabelecer laços emocionais.
Nessa perspectiva, a separação entre mente e corpo introduz debates sobre a existência de consciência em uma entidade desprovida de corpo biológico, levando-me a pensar sobre o dualismo cartesiano proposto por René Descartes (1596-1650).
No século XVII, o filósofo francês argumentou que corpo e mente são duas substâncias distintas: enquanto o corpo – sujeito às leis da física – é uma substância extensa (res extensa), a mente seria uma substância pensante (res cogitans). Descartes considerava a mente como algo imaterial e livre, capaz de alterar ou até mesmo inibir comportamentos reflexivos que normalmente seriam respostas mecânicas a estímulos do ambiente. Além disso, associava as emoções à quantidade de “espíritos animais” liberados pelo cérebro em uma reação: quanto maior a liberação desses espíritos, mais intensa seria a emoção experimentada.
Replicando o pensamento
No livro “Mente” (2007), o autor Eric Matthews explora a inteligência artificial como uma possível ameaça à exclusividade da mente humana e levanta questões importantes: “Poderia uma máquina, assim como um computador ou um robô, realmente ter uma mente? Ou será isso apenas uma confusão?”. Caso isso fosse possível, tais máquinas poderiam até mesmo superar as capacidades mentais humanas, alterando nossa percepção sobre nós mesmos?
Essas questões não apenas desafiam nossa compreensão do que é ter uma mente, mas também abrem novos debates sobre a nossa própria identidade enquanto seres humanos e desafia a teoria de Descartes, que acreditava que era impossível duvidar do pensamento, pois o próprio ato de duvidar já seria uma forma de pensar.
Desta forma, vejo a IA como uma tentativa de replicar o nosso pensamento, raciocínio e aprendizado, criando uma espécie de simulação desses processos, já que ela é programada por seres humanos através de algoritmos computacionais.
Em um sentido moderno, podemos compreender que o hardware atua como o “corpo” no contexto funcional, responsável por executar as tarefas, enquanto o software seria a “mente”, encarregada de processar informações por meio de códigos e linguagem de programação. É claro que essa analogia é imperfeita, pois a mente humana é mais do que um software, abrangendo consciência e experiências subjetivas – algo que a IA não possui.
Além da ficção
Filmes e séries de ficção científica frequentemente exploram esses dilemas filosóficos citados. No filme “Ela” (2013), o protagonista desenvolve uma relação amorosa com uma IA, desafiando a concepção dualista e levando o telespectador a questionar se o pensamento e os sentimentos podem existir entre homem e máquina. Já em “Ex-Machina: Instinto Artificial” (2015), a questão da consciência artificial é explorada através da criação de Ava, uma robô humanoide que aparenta ter emoções e pensamentos próprios. A ciborgue Major Motoko, da animação japonesa “Ghost in the Shell – O Fantasma do Futuro” (1995), lida com a separação entre corpo e mente. Por fim, “Matrix” (1999) reflete sobre o limite entre a realidade física e a percepção mental, em uma simulação controlada por máquinas.
Essas obras em comum não apenas ilustram os dilemas filosóficos do dualismo cartesiano, mas nos provocam sobre os limites das fronteiras entre o homem e a inteligência artificial. O que antes era ficção agora faz parte da nossa realidade.
Essa linha tênue pode ser exemplificada por avanços na área tecnológica, como a pesquisa da Unicamp sobre inteligência artificial capaz de reconhecer emoções humanas – um conceito novo chamado de computação afetiva. O estudo se concentra em desenvolver algoritmos para identificar emoções a partir de sinais não-verbais, como expressões faciais, tom de voz e gestos.
Por sua vez, o Replika funciona como uma espécie de amigo virtual, um chatbot desenvolvido para simular conversas com usuários, oferecendo até mesmo a funcionalidade de apoio emocional.
Ambos os exemplos ilustram como a inteligência artificial está avançando no campo da interação emocional, abrindo caminho para novas pesquisas e experimentos inovadores.
O legado de Descartes
Não tão longe da realidade, somos convidados a rever o que significa ser verdadeiramente consciente, emocional e, acima de tudo, humano. Em um futuro cada vez mais dominado pela tecnologia, esses pensamentos se tornam ainda mais relevantes, estimulando-nos a considerar como a inteligência artificial pode ser benéfica no cotidiano e como ela pode redefinir nossa compreensão enquanto seres humanos.
Isso não quer dizer que Descartes estava errado. No entanto, com as descobertas da neurociência e o avanço tecnológico, suas ideias sobre mente-corpo foram desafiadas, tornando sua teoria ainda mais complexa. À medida que avançamos para um futuro em que as máquinas começam a se aproximar das capacidades humanas, suas ideias filosóficas continuam a ser relevantes em um mundo cada vez mais automatizado.
O verdadeiro desafio não está apenas no que as máquinas podem ou poderão fazer, mas em como aproveitaremos suas habilidades de maneira ética e responsável e lidaremos com as implicações de suas limitações.
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Samuel Gallo é jornalista e publicitário, com MBA em Comunicação e Marketing. Atua na área de Tecnologia Educacional em Ribeirão Preto (SP).