Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Imperialismo, luta de classes e novas tecnologias de comunicação

1. Em Arqueologia do saber (1969), Michel Foucault inscreveu um lugar específico para a metafísica, as unidades discursivas. E o que são elas? São as crenças nossas de cada dia nas identidades dos rostos, tenham a configuração que vierem a ter. Supor que tal autor escreveu tal livro é render-se a duas unidades discursivas ao menos: a de que um autor é fulano de tal, na suposição de que tal fulano seja ele mesmo, ontem, hoje e amanhã; e a de que tal livro tenha um começo e um fim definidos pelo unidimensional autor.

2. A metafísica das unidades discursivas é uma abstração que ignora o óbvio: por mais que pretendamos cultivar nossas singularidades autorais, ninguém e nada é o que é pela evidente razão de que somos antes de tudo seres coletivos. Eis porque as unidades discursivas, ser quem nos supusemos, podem ser analisadas igualmente como uma espécie paradoxal de sequestro de coletividades.

3. Se uma unidade discursiva pode ser definida como qualquer coisa que nomeamos como tal, vivendo-a como se pudesse estar apartada das demais dimensões sociais, os saberes designados como matemática, física, química, teoria da literatura, história, antropologia são unidades discursivas, assim como o são igualmente tudo que nomeamos: pessoas, países, objetos, mercadorias; os seres animados e inanimados, além, é claro, do jogo entre as palavras e as coisas, na suposição de que ao nominar algo, um pardal, por exemplo, o encarnamos pela linguagem.

4. Ainda bem que um pardal desconhece a linguagem humana de modo que pode sair voando por aí independente do que supomos ser, embora mesmo isso não seja tão simples assim porque designar é também dominar, se se considera por exemplo o conceito de esclarecimento de Adorno e Horkheimer. Nomear é colocar-se em posição senhorial ao que é nomeado, razão pela qual seja possível dizer: em todo ato de nomear existe esta sentença de morte: te conheço ou sei sobre você!

5. Mas é possível viver, produzir uma sociedade, sem unidades discursivas? É possível existir sem que sejamos homens, mulheres, negros, brancos, índios, gays, crianças, sujeitos e objetos? A linguagem pode se constituir sem nomear algo distinguindo-o de tudo o mais? Todas essas perguntas são falsas questões. A unidade discursiva não é naturalmente negativa e na verdade só o é quando a vivemos como religião, razão suficiente para afirmar: em cada unidade discursiva existe este monstro: um filhote de Deus, se, em conformidade com as religiões semíticas de salvação, venhamos a definir Deus como aquele que é em oposição àquele que não é (por exemplo, o demônio) não sendo circunstancial que São Tomás de Aquino tenha assim se posicionado a respeito: Deus é; nós, temos sido.

6. Mas é da natureza das unidades discursivas serem religiosas? É da natureza das religiões serem unidades discursivas? No cristianismo aprendemos que Deus é um e é três; é pai, filho e espírito santo. O que significa isso? Significa que a diversidade tem um princípio, uma origem: Deus, essa unidade discursiva que é o precipício de todas as demais – o espírito delas. Em face dessas questões, talvez seja possível dizer: é da natureza dos poderes senhoriais se colocarem como o centro irradiador das multiplicidades da vida, vendendo-nos a ilusão de que tudo que existe provém dele.

7. Uma unidade discursiva como religião senhorial é a herança nesta crença: é herdeira de uma unidade discursiva transcendental, que pode ser Deus ou uma religião, que pode ser o Soberano, que pode ser uma nacionalidade, que pode ser um animal totêmico, uma planta, não importa, o importante é que, como unidades discursivas, sejamos tributários desta religião: há um senhor que nos guia, que nos define enquanto tal – e esse senhor pode ser Deus, o soberano, o patriarca, a linguagem, o saber, a verdade.

8. Se, com Walter Benjamin, na tradição do oprimido, o estado de exceção se constitui como regra geral é porque em círculo talvez seja possível argumentar: a existência do oprimido torna as unidades discursivas metafísicas, transcendências, religiões.

9. Esta é pois a função principal das unidades discursivas que ecoam um centro soberano, um Deus: servem para manter a tradição do oprimido. A principal unidade discursiva, sob esse ponto de vista, é a que liga o passado, o presente e o futuro. O que herdamos dos passados opressores, no presente, é: tecnologia de opressão. Cabe a cada presente de opressão fazer o máximo de uso dos passados opressores, principalmente de suas guerras permanentes contra os oprimidos, complexificando-as com tecnologias ainda mais eficazes, ainda mais, para ser redundante, opressoras.

10. No quadro milenar de sociedades oligárquicas, senhoriais, as unidades discursivas são religiosas no pior sentido do termo: elas cumprem o papel de manter o liame histórico de opressão, o que equivale a dizer que servem antes de tudo para sedimentar, no tempo, a tradição do oprimido, como se esta fosse uma segunda natureza humana, como se fosse uma questão de religião a existência de opressores e de oprimidos – assim como as guerras, que são antes de tudo guerras da e na tradição do oprimido, que existem para perpetuá-la.

11. A tradição do oprimido é portanto a continuidade no tempo de sociedades opressoras, desiguais, hierárquicas, bélicas. Diria que sua principal arma, a dos opressores, sempre foi o uso bélico/religioso das unidades discursivas. Estas, por isso mesmo, definem cada época histórica. Na sociedade da soberania, por exemplo, a unidade discursiva principal é: soberano e súdito, num contexto em que o atrito de ambos, via sacrifício do segundo, produz transcendências, religiões, razão suficiente para dizer que a principal mercadoria, também entendida como unidade discursiva, da sociedade da soberania é: a transcendência. Esta, por sua vez, pensada como unidade discursiva da sociedade da soberania, divide o mundo em alto e baixo, em superior e inferior, imortal e mortal, em contextos diversos em que o primeiro polo, o do soberano, é sempre o lugar da superioridade, da imortalidade, da reverência, do divino.

12. A sociedade disciplinar não elimina a soberana. Pelo contrário, a espalha. Para tanto, multiplica unidades discursivas disciplinares: a família, a polícia, o hospício, a escola, a cadeia, a fábrica. Como se vê, a sociedade disciplinar se define como arranjo histórico que produz instituições disciplinares, entendidas como unidades discursivas.

13. Como o principal objetivo da tradição do oprimido é manter o liame histórico de opressão, não é circunstancial que as instituições da sociedade disciplinar contenham nelas a figura do soberano e do súdito em contextos em que o atrito de ambos deve ser resolvido pela produção de transcendência. Entre pai e filho, este deve se submeter àquele, a fim dotar a figura do pai de transcendência. Entre patrão e empregado a mesma coisa: este deve se assujeitar àquele para que o patrão seja o lugar da transcendência.

14. Se a sociedade da soberania submete o súdito, sacrificando-o, para produzir transcendência para o soberano; a sociedade disciplinar, por sua vez, tem na disciplina sua razão de ser. Um filho disciplinado, significa, por isso mesmo, um pai transcendental; um saber disciplinado significa um professor transcendental. E assim por diante.

15. A sociedade do controle, que é a que vivemos, tal como a disciplinar em relação à soberana, não elimina as anteriores: herda delas tanto a relação soberano/súdito/transcendência, unidade discursiva da sociedade da soberania; quanto a multiplicação de unidades discursivas, via instituições disciplinares, da sociedade da disciplina.

16. A sociedade do controle se define tendo em vista a presença no cotidiano de tecnologias de captura tanto da sociedade da soberania como da sociedade disciplinar. É tipicamente uma sociedade tardia, esgotada, porque vive de dilatar a soberania e a disciplina, ainda que pareça profundamente não soberana e indisciplinada.

17. Se se considera o deslocamento da sociedade da soberania para a disciplinar, o que se observa é a multiplicação da relação entre soberano/súdito/transcendência. A sociedade disciplinar no fundo e no raso é profundamente soberana. A mesma situação se dá com a sociedade do controle: é ao mesmo tempo profundamente soberana e disciplinar, mas o é na medida mesma do que está em jogo na longa história da tradição do oprimido, a saber: a produção de modelos sociais oligárquicos, isto é, para poucos.

18. Na sociedade da soberania, esse “para poucos” da oligarquia tem alguns nomes: reis, imperadores, senhores feudais, sultões, emires, em contextos diversos cujo princípio comum é: não fazem parte do cotidiano dos povos. Na sociedade disciplinar, por sua vez, o “para poucos” da transcendência se espalha no pai, no patrão, no marido, no chefe, nos saberes, no dinheiro, no quotidiano. Na sociedade do controle, o “para poucos” sofre um metamórfico retorno à sociedade da soberania, via soberano, por meio do indivíduo isolado, reificado, razão suficiente para deduzir que no contemporâneo, berço da sociedade do controle, somos igualmente estimulados a nos sentirmos como se fôssemos reis, por meio de um curioso processo in/out envolvendo o indivíduo e a máquina ou o indivíduo e as Novas Tecnologias de Comunicação (NTC), tendo em vista a revolução nas ciências eletrônicas e seu desdobramento, por exemplo, na telemática, entendida como sistemas informáticos de processamento de sons, imagens, textos.

19. O sistema in/out da sociedade do controle se inscreve numa dinâmica interativa do sujeito e da máquina tal que o indivíduo tende a se isolar cada vez mais tendo como interlocutor equipamentos eletrônicos de comunicação que o metamorfoseia numa Id-identidade. Do aparelho psíquico de Freud, Superego, Ego, Id, é o Id, esse Narciso primário, que emerge como o novo rei, o novo soberano, gozando-se de transcendência, estando ao mesmo tempo isolado, logo indisponível para o quotidiano; e igualmente espalhado, quotidianizado, pois é encontrado por todos os lados.

20. Se pensarmos o aparelho psíquico de Freud sob o ponto de vista da sociedade disciplinar, é possível inferir da relação entre o Superego, o Ego e o Id, que o primeiro, o Superego, a voz do soberano, de Deus, da Moral, da Interdição, inscreve-se no segundo, o Ego, tendo em vista a formação de uma unidade disciplinar (o sujeito e sua personalidade) ancorada na consciência, razão pela qual a culpa funciona na sociedade disciplinar, porque nesta a consciência culpada o é porque deve ser disciplinada para evitar a todo custo as pulsões narcísicas do Id, acatando as interdições do Superego.

21. Na sociedade disciplinar, a consciência culpada, o Ego, é o sinal de que sequência soberano/súdito/transcendência está funcionando. Por outro lado na sociedade do controle, o aparelho psíquico de Freud sofre uma importante mutação, passando a ser assim assinalado: Id, Superego, Ego. Como se vê, o Id toma o lugar do Superego, transformando-se no novo ditador ou no novo velho soberano, ao mesmo tempo que condena o Ego ao exílio psíquico. Nesse contexto, a culpa da sociedade disciplinar não mais funciona na sociedade do controle.

22. O indivíduo isolado Id-entificado da sociedade do controle é desculpabilizado; um Id ambulante. Os jovens (inclusive europeus) do Emirado Islâmico são o exemplo mais acabado (ou deformado) dessa nova/velha configuração psíquica da sociedade do controle: são Ids ambulantes treinados pelo Imperialismo americano ( direta e indiretamente) no contexto das tecnologias bélicas do controle.

23. As cenas de alguns deles comendo coração e fígado de suas vítimas é a prova mais evidente do retorno do Id-Superego ao interior do contemporâneo; cenas digitalizáveis pelas Novas Tecnologias de Comunicação (NTC). Estas, portanto, constituem-se como o suporte eletrônico/comunicativo do liame da tradição do oprimido entendida ela mesma como unidade discursiva entre a sociedade da soberania, disciplinar e do controle, razão pela qual estamos no interior da sociedade do controle integrado, mistura dos três modelos que a tradição do oprimido produziu com o objetivo de submeter o trabalho coletivo, sequestrando-o, aviltando-o, assassinando-o, a fim de tomar posse de sua transcendência.

24. Os celulares, os satélites de comunicação, os computadores, os drones, o videofone, que permite visualizar à distância, o videogame e uma sem fim maquinetas do controle são acionadas a partir do cotidiano como armas de guerra para a mutação do Ego e do Superego em Id, formando personalidades narcísicas, infantis, cuja paradoxal disciplina é deslocada para o consumo e para o uso sem fim das Novas Tecnologias de Comunicação.

25. Fundamentalmente, o que se comunica, o interior da sociedade do controle, é: o Ide (verbo ir no imperativo) igual a Id. Tudo tende a ocorrer de Ide para Id, agora ao mesmo tempo um Superego e um Ego transcendentalmente desculpabilizado.

26. Essa situação traz um enorme problema para a luta de classes, pois é meticulosamente manipulada para ao mesmo tempo: 1.sequestrar a consciência da opressão, formando um oprimido soberano (ou que, como Id, se ilude que o é); 2. confundir-nos, pois esse indivíduo isolado Id-entificado, com o objetivo de fazer valer seus narcísicos desejos primários, luta contra os outros Ids, estando cego, nesse contexto, para visualizar os verdadeiros opressores.

27. O imperialismo americano é o administrador mundial da sociedade do controle integrado e a agencia precisamente usando as Novas Tecnologias de Comunicação como modelo de realização de uma humanidade Id-entificada.

28. Quando o Superego se torna Ego que se torna Id a guerra é total, absoluta. O imperialismo americano concentra seus esforços todos (financeiros, intelectuais, tecnológicos, bélicos, internéticos, comunicativos ) com o objetivo de se transformar no soberano transcendental da guerra absoluta planetária – essa em que cada Id, cada indivíduo isolado, faz-se ao mesmo tempo como soberano em relação ao outro indivíduo, concebido a priori como um oprimido a ser destruído.

29. O imperialismo americano é ele mesmo um Id absoluto, que se apresenta como um Superego ao mesmo tempo, sempre manipulando as Novas Tecnologias de Comunicação, em que publicitariamente se edita como o Ego da consciência democrática da humanidade. Suas multinacionais são o exemplo mais trágico da sociedade Id-entificada. O narcísico desejo delas de sequestrar as riquezas dos povos, concentrando-as de forma transcendental, não tem fim. Como crianças mimadas, querem mais e mais, sendo capazes de tudo para tal, assim como o Id do sistema psíquico freudiano.

30. Na sociedade do controle integrado a unidade discursiva por excelência é o Id. Tudo é Id em seu interior, inclusive as mercadorias, até porque tudo é mercadoria Id-entificada, tendo o dinheiro e muito especialmente o dólar como o Id da abstração divina – ao mesmo tempo um Superego e um Ego vencidos pelo narcisismo primário de acumular contra tudo e todos.

31. O imperialismo americano é a empresa mundial de produção da seguinte unidade discursiva planetária: Id-entificação. Seu ao mesmo tempo inconsciente e consciente desejo Id é: transformar o planeta inteiro num teatro de guerra, tal que cada Id-entificado se transforme numa arma de guerra contra a vida na Terra – contra, por extensão, a consciência libertária, igualitária, latentes nos povos do mundo.

32. É mera ilusão, nesse cenário, o argumento de que se possa realizar revoluções emancipadoras usando as Novas Tecnologias de Comunicação principalmente tendo em vista as redes sociais. Não se faz revolução de Ide para Id, entre Ids, principalmente porque além de Id-entificados, somos também Id-identificados pelo sistema de vigilância planetário do imperialismo americano.

33. O que a humanidade precisa mais do que nunca é de uma consciência planetária do oprimido como uma única classe social. O sistema Id do imperialismo americano nos divide indefinidamente, transformando-nos em fissuras atômicas: bombas contra a vida coletiva.

34. O estado de exceção oligárquico contra os oprimidos da Terra produz uma tradição do oprimido da sociedade do controle integrado. Nesse contexto, o que necessitamos pura e simplesmente é de sair do lugar de soberanos iludidos ou de soberanos Id-entificados pelas Novas Tecnologias de Comunicação, a fim de nos inscrevermos no nosso verdadeiro lugar: de oprimidos, senha para deixarmos de sê-lo. Para tanto, devemos eliminar o mínimo desejo de nos fazer soberanos transcendentais.

35. Sob o ponto de vista dos oprimidos da Terra, a luta de classes no interior da sociedade do controle integrado obviamente, se consciente dos desafios do e no contemporâneo, não deve satanizar as Novas Tecnologias de Comunicação. Não é disso que se trata. O que está em jogo é uma radical democratização do uso coletivo das Novas Tecnologias de Comunicação.

36. As Novas Tecnologias de Comunicação, portanto, devem ser produzidas tendo em vista um sistema de propriedade social, para não dizer civilizacional. Se a questão da luta de classes, quando posta a serviço da eliminação da tradição do oprimido, está na razão direta da coletivização dos meios de produção, o que está em jogo no interior da sociedade do controle integrado é apropriação social dos meios dos meios nas Novas Tecnologias de Comunicação.

37. E o que são os meios dos meios? O colombiano Jesús Martín-Barbero, no livro De los medios a las mediaciones- comunicación, cultura y hegemonía (1987) foi quem primeiro colocou essa questão nos seus termos: as Novas Tecnologias de Comunicação desempenham o papel hoje de mediadoras planetárias de subjetividades. Se se considera o imperialismo americano, esse Id das guerras (ide às guerras), as mediações planetárias, in/out, tem como objetivo o seguinte: produzir Ids, razão pela qual o que é mediado mundialmente tem sido Id através de Id.

38. O imperialismo americano USA e abUSA das mediações das e nas Novas Tecnologias de Comunicação com o objetivo determinado de se tornar o Superego/Id da luta de classes planetária, substituindo-a por uma luta de classes ao estilo mediação mundial de Ids. É nesse contexto que é possível dizer que o objeto da luta classes planetária, sempre tendo como referência o ponto de vista do oprimido igualmente mundial, é: a própria mediação inscrita no DNA das Novas Tecnologias de Comunicação.

39. A hegemonia que os oprimidos do mundo estão desafiados a produzir não será minimamente possibilitada sem o domínio coletivo das mediações produzidas pelas Novas Tecnologias de Comunicação.

40. Dos meios às mediações, o objeto da luta de classes deve ser: as mediações.

41. Se a sociedade da soberania produzia mediações transcendentais através da maldição dos súditos, o curto-circuito dela se dava liberando os súditos não permitindo que o soberano sequestrasse para si a transcendência. Cristo foi a senha por excelência desse curto-circuito. A imagem órfica de sua caída na mortalidade é indicação exemplar que o produtor da transcendência deve ser seu único exclusivo dono: o pobre, o excluído coletivo.

42. A longa história do messianismo entre os pobres do mundo, por contraditória que seja, é parte desse projeto de um Deus caído, o que equivale a um soberano que mais não é, para que o coletivo nasça transcendentalizando-se.

43. Se a sociedade disciplinar produz mediações transcendentais multiplicando unidades discursivas institucionais, como a família, a fábrica, a escola, o curto-circuito dela se dá pela orquestração coletiva de instituições sem soberanos, radicalmente democráticas: uma família sem o patriarcado, uma fábrica sem patrão, uma escola sem mestre.

44. Se a sociedade do controle integrado produz suas mediações incorporando as tecnologias de poder soberanas e disciplinares por meio do deslocamento do soberano (logo de Deus, da transcendência) para o indivíduo isolado, o opressor e o oprimido de si mesmo e dos demais, disciplinando-o por meio de overdose de interações com os artefatos das Novas Tecnologias da Comunicação, seu curto-circuito é um só: usar a rede in/out das e Novas Tecnologias de Comunicação tendo em vista o projeto freudiano de um Ego emancipado tanto da moralidade policial do Superego como dos cegos e letais desejos narcísicos do Id.

45. Para tanto, é preciso produzir referências objetivas. Uma delas, a mais importante, é: a destituição do imperialismo americano como o epicentro da produção mundial de Ids, o que só é possível trabalhando para transformar os Estados Unidos em um país socialista, sem oligarquia.

46. Como os Estados Unidos são ao mesmo tempo os meios e as mediações de Ids de todo o planeta, transformá-los numa sociedade socialista é tarefa não apenas para os americanos, mas para todos. O povo americano é fascinante, extraordinário, transcendental, pela evidente razão de que é um povo-mundo.

47. O socialismo dos Estados Unidos, como forma de salvar a vida na Terra, é o socialismo mundial que combaterá a empresa mundial de produção de Ids não por meio da luta individual contra o Id, porque nesse caso seremos igualmente Ids, mas através da destituição das oligarquias de todos os lugares do planeta, uma vez que o oligarca é em si o DNA de produção e reprodução de produção de Ids.

48. Essa destituição planetária de todas as oligarquias do mundo, a começar pela americana, só será possível se desprogramarmos as Novas Tecnologias de Comunicação, mediando-as com as nossas presenças coletivas.

49. No romance Grande sertão: veredas (1957), do escritor brasileiro João Guimarães Rosa, essas presenças têm muitos nomes e se resumem num só: o demo, como é possível observar no seguinte fragmento da obra: “Pois, hem, que, despontar o Rio pelas nascentes, será a mesma coisa que um se redobrar nos internos deste nosso Estado nosso, custante viagem de uns três meses…Então? Que-diga? Doideira. A fantasiação. E, o respeito de dar a ele assim esses nomes de rebuço, é que é mesmo um querer invocar que ele forme forma, com as presenças! (ROSA, 2001, p. 24).”

50. Para recobrar nos internos desses nossos Estados Unidos, destituindo a civilização Id da sociedade do controle integrado, é preciso, tal como indica o romance de Rosa, despontar o Rio pelas nascentes, o que equivale a dizer: é necessário retornar à sociedade da soberania, destituindo-a totalmente da face da Terra, por meio de um demo/povo que forme forma com suas presenças!, mediando-se coletivamente sem mais precisar de qualquer tutela; sem mais precisar de qualquer forma de representação exterior a si.

51. Um povo/demo que a si mesmo se comunica, com suas presenças, formando formas transcendentais no coração do quotidiano, num mundo sem famosos e sem anônimos.

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Luis Eustáquio Soares é professor