Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A civilizada barbárie midiática e as mídias livres

Observemos as palavras heterodoxia e ortodoxia: ambas têm em comum o radical doxa, que significa simplesmente opinião popular, estereótipo, convenção, verdade, motivo pelo qual heterodoxo é o contrário de ortodoxo, pois enquanto a primeira palavra indica aquilo que é o contrário da opinião popular, o diferente, o inusitado, o não esperado, a outra lógica; a segunda, por sua vez, reforça o sentido comum como fonte ou referência fundamental das condutas consideradas certas e normais; logo ortodoxas.

No entanto, observando mais de perto a palavra ortodoxia, começamos a achar que existe algo de podre no reino de Dinamarca, pois é um vocábulo formado por orto, que significa correto, e por doxa, que significa, como vimos, opinião comum, donde podemos concluir que ortodoxo constitui a opinião comum mais correta que as demais supostas opiniões comuns.

Existe, pois, na palavra ortodoxo, uma pretensão autoritária de algo ou alguém que se julga de posse de uma verdade, que é mais verdade que a verdade comum, a do senso comum, pois se apresenta como a verdade correta ou simplesmente como a verdade que todos devem acatar, a pretexto de seguir o caminho considerado comumente correto.

Para escarafunchar mais agulha no paiol, é possível notar ainda que ortodoxia não quer apenas significar uma verdade mais verdadeira que as demais, posto que pretende constituir-se também como uma verdade do e para o senso comum, de modo que quer ser ao mesmo tempo correta, unidimensional e, por isso mesmo, aquilo que deve ser aceito por todos, como verdade qualquer, e heterodoxa, e ao mesmo tempo única, logo ortodoxa.

A batalha pelo heterodoxo

A esse estranho fenômeno de uma verdade querer sempre ser mais verdadeira que outra e ao mesmo tempo banal, porque presente no comportamento da maioria, podemos chamar de paradoxo da doxa ou de paradoxo da verdade, o paradoxo de uma verdade arrogante, por querer ou pretender ser ao mesmo tempo a única verdade para todos, independente de diferenças econômicas, étnicas, de gênero, históricas, culturais.

O que distingue, por outro lado, as culturas de massa, como a nossa, das sociedades precedentes, é exatamente isto: a verdade continua sendo, de forma ortodoxa, controlada por uma elite ou casta, embora deva estar sob a posse de qualquer um. No mundo da sociedade do espetáculo, que é o nosso, a ortodoxia não é uma verdade cuja posse legítima é a de um grupo restrito, mas a da massa, da maioria, de qualquer um, razão pela qual é uma ortodoxia heterodoxa, por funcionar ou valer sempre conforme as circunstâncias e os interlocutores.

Ortodoxo, hoje, portanto, é a verdade, banal, estúpida, acessível, sob a posse de qualquer um, mas manietada por poucos. Eis porque tem poder, na sociedade contemporânea, quem consegue transformar a verdade de seus interesses em vulgar verdade ortodoxa ou, para dizer de outro modo, em vulgar verdade mais correta que as outras verdades vulgares, como se uma vulgaridade fosse melhor que a outra.

O imperialismo, nas sociedades burguesas, é a verdade vulgar universal, ortodoxa e heterodoxa, tanto mais pretensiosamente correta, única, quanto mais estiver na boca de qualquer um, sem exceção ou privilégios. É exatamente por isso que a cultura de massa constitui a principal tara do imperialismo burguês porque é através dela que ele consegue impor a sua heterodoxia como ortodoxia, como verdade mais verdadeira que as outras; ou como vulgaridade mais correta. Uma coisa, portanto, é certa: a nossa época é a da batalha pelo heterodoxo, de modo que a sua premissa é: imponha a sua heterodoxia; transforme-a em verdade ortodoxa; e dominarás o mundo.

Um ódio profundo à democracia

Depois da heterodoxia do neoliberalismo, que se transformou por excelência na ortodoxia da década de 90; depois que essa vulgaridade neoliberal tomou todo o mundo e antes de tudo depois que começou a ser questionada na América Latina, através de governos como o de Hugo Chávez, da Venezuela e, em menor medida, o de Lula da Silva do Brasil; ou de Evo Morales, na Bolívia, Rafael Correa, no Equador; e finalmente depois que o verdadeiro sentido comum, o de demos, do povo, com as suas necessidades básicas de morar, de comer, de saúde, de segurança, começar – e já começa – a questionar a ortodoxia da vulgata neoliberal por todo o mundo, Oriente Médio, Norte da África, Europa, EUA, então a populista ortodoxia neoliberal contra-atacará, e está contra-atacando, transformando em senso comum guerras inomináveis, como a dos EUA e aliados contra Iraque, Afeganistão, Paquistão, Somália, Líbia, assim como com ataques igualmente inomináveis, heterodoxos e ortodoxos, contra ativos estatais até então resguardados, por se encontrarem entre Estados aliados, como os ativos econômicos relativos ao sistema de previdência de países europeus, como Grécia, Portugal, Itália, Irlanda, Espanha.

Uma coisa é certa, portanto, se algo ou alguém pode realmente ser acusado de ser populista, esse algo ou alguém de modo algum tem a ver com políticos populares, no sentido forte do termo, mas com a própria dominação militar-econômica-ideológica dos povos. E a estratégia dessa dominação populista dos povos é sempre a mesma: manipulação populista de promessas, transformando-as em vulgatas promessas em nome das quais uma heterodoxia qualquer, a da própria dominação, acha-se livre para impor sua própria ortodoxia – e sempre exatamente sobre ou em detrimento das ditas promessas.

Assim ocorreu, por exemplo, com a promessa de igualdade, liberdade, fraternidade, defendida pela burguesia ascendente, para evitar que o acontecimento por excelência da Revolução Francesa, a Tomada da Bastilha, pelo povo, desencadeasse ou facultasse a emergência de uma civilização sem hierarquias econômicas e simbólicas, logo de iguais, para a qual a liberdade fosse igualmente liberdade fraternal entre todos os iguais, para produzir mais e mais igualdade, mais e mais liberdade e mais e mais fraternidade.

Desde a Revolução Francesa de 1789, tudo que temos visto e vivido é a burguesia ocidental-planetária – não mais ascendente – em nome da igualdade, da liberdade e da fraternidade, realizar toda sorte de deturpações, guerras e genocídios precisamente para eliminar todo vestígio democrático de igualdade, de liberdade e de fraternidade entre os povos, para os povos. Tudo que temos visto e vivido, portanto, é um ódio profundo à democracia, ainda que sob o juramento de amá-la mais que tudo.

Uma civilização hipocritamente heterodoxa

As duas guerras mundiais do século passado foram, sob esse ponto de vista, guerras contra a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Após a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, instituições tais como ONU, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional foram criadas em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade para massacrar, humilhar, desprezar e mentir para tudo que seja ou esteja a caminho de tornar-se igualdade, liberdade e fraternidade entre povos, pelos povos e para os povos.

O que é o Tribunal Internacional de Haia, a propósito, senão uma ortodoxa instituição heterodoxa? Explico: ortodoxa para condenar como criminoso de lesa-humanidade, por exemplo, o líder líbio Muammar Kadafi, enquanto os genocídios no Iraque, no Afeganistão, na Palestina, no México, Colômbia e na própria Líbia, em função dos bombardeios da Otan, são absolutamente ignorados. Para alguns, portanto, o rigor ortodoxo da lei; para outros, por sua vez, um comportamento heterodoxo para relativizar a verdade, multiplicando-a e concebendo-a conforme as circunstâncias.

Se a Segunda Guerra Mundial foi uma guerra contra a liberdade, a igualdade e a fraternidade, ainda que combatessem em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade, sob o pretexto de que o nazismo era o nome próprio do mal, a vitória dos aliados foi a vitória contra a liberdade, a igualdade e a fraternidade. A diferença dos aliados em relação a Hitler reside no fato de que este estava de posse de uma verdade ortodoxa, a superioridade do ariano, enquanto que os aliados foram heterodoxos ou hipócritas, pois falaram em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade embora fossem tão ortodoxos quanto Hitler.

Se, por sua vez, o mundo em que vivemos ainda é o que os aliados vitoriosos da Segunda Guerra Mundial mapearam para ser como é, através da construção ortodoxa de instituições supostamente universais, como a ONU, por exemplo, significa dizer que vivemos numa civilização hipocritamente heterodoxa, tanto mais quanto mais a ortodoxia do lucro das multinacionais e de banqueiros for a regra geral intocável.

Identificar os verdadeiros bárbaros

O que chamamos de mídia planetária, hoje oligopolizada, nada mais é que o resultado comunicacional-tecnológico do alinhamento ortodoxo da informação aos donos do mundo, aos aliados, tendo em vista a mesma estratégia que subjaz instituições como o FMI, Banco Mundial, ONU: falar em nome da igualdade, da liberdade e da fraternidade para eliminá-las e evitá-las a todo custo – claro, custo para a liberdade, para a igualdade e para a fraternidade, não para os aliados imperiais, evidentemente da partilha ortodoxa do mundo.

Com a vitória dos aliados imperialistas na Segunda Guerra Mundial, o que ficou claro foi o seguinte: a barbárie doravante, mais que nunca, será heterodoxa, de modo que estamos diante de um novo perfil para os bárbaros: eles não parecem bárbaros, falam em nome da igualdade, da democracia e da liberdade e sabem como ninguém utilizar a ortodoxia como arma letal contra a igualdade, a liberdade e a fraternidade.

O espaço por excelência da hipócrita heterodoxia na sociedade atual é o midiático; heterodoxia tanto mais ortodoxa quanto mais transforma a sua liberdade de expressão em barbárie ortodoxa para acusar e incriminar, sem presunção de inocência, tudo que demande e pulse igualdade, liberdade e fraternidade, razão pela qual é o lugar da barbárie ou a própria barbárie heterodoxa se realizando, sem cessar, em cada lar, em cada subjetividade, nas ruas, através de publicidades, por todo o lado.

Se a luta pela igualdade constitui o lugar da liberdade e da solidariedade, é possível afirmar que não existe liberdade e solidariedade que não sejam ou estejam produzindo igualdades sem fim. E é porque a barbárie heterodoxa do mundo contemporâneo é precisamente a que fala em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade, as liberdades, igualdades e solidariedades – nem ortodoxas e nem heterodoxas – da atualidade precisam aprender identificar os verdadeiros bárbaros, objetivamente, com clareza, se não quiserem, mesmo com boa vontade, serem ou se fazerem como uma espécie de quinta coluna dos bárbaros heterodoxos, os quais, de forma ortodoxa, estão em guerra contra a vida na Terra.

Um planeta de e para a paz, sem condenados

Em termos concretos, tendo em vista que os bárbaros heterodoxos são os que de forma ortodoxa detêm, não por acaso, um poderio bélico capaz de acabar com o planeta não sei quantas vezes, então a luta pela igualdade, a livre luta solidária, deve ser contra toda e qualquer forma de guerra, principalmente aquelas que utilizam a desculpa da igualdade, da democracia, da liberdade de expressão para matar, sequestrar, barbarizar.

Para isso, o primeiro princípio é: a guerra é injustificável, qualquer guerra, sobretudo a do mais forte contra o mais fraco, que é covardia, soberba, ignorância, estupidez, ortodoxia injustificável, sob qualquer ponto de vista heterodoxo – ou ortodoxo. O segundo princípio, por sua vez, é: não confiar nas notícias que a grande mídia edita e veicula, principalmente as que têm como objetivo a aceitação, normalização ou a justificação das guerras imperialistas: são o lugar da heterodoxa ortodoxia da barbárie atual.

Por fim, ou mais precisamente por começo, produzamos sentidos, afetos, criatividades, alegrias, esperanças, informações, análises, desejos, meios, mídias, a partir de um compromisso nem ortodoxo nem heterodoxo com o pobre, sobre quem pesa e caem as bombas todas de nossa civilização, bombas radiativas de ortodoxia econômica, racista, linguística, simbólica, machista, colonizadora, imperialista.

Sejamos, pois, as mídias não belicistas dos condenados da terra. Sejamos mídias palestinas, iraquianas, afegãs, africanas, latino-americanas, asiáticas, norte-americanas, europeias; sejamos a mídia utópica de um planeta vital, de e para a paz, logo sem condenados; sem a heterodoxia condenatória de Obama e seus aliados e sem a ortodoxia expiatória de Osama nas alturas: ousemos e nos inventemos, localmente, mundialmente, midiaticamente.