Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Regulação da Netflix: separar o joio do trigo

Edilásio Barra Jr. como apresentador do programa Café Sucata Show, disponível no YouTube. (Foto: Reprodução Youtube)

Na última semana, a notícia de que o pastor, produtor e jornalista Edilásio Barra Jr. assumiria a Secretaria do Audiovisual do governo de Jair Bolsonaro percorreu toda a imprensa. Em entrevista para a BBC News, repercutida por diversos outros veículos, Barra apresentou uma agenda de políticas públicas para o setor que assustou muita gente. Entre as propostas mais polêmicas estava a ênfase dada pelo pastor ao direito de obras evangélicas terem acesso a verbas públicas. Para justificar sua proposta, ele explicou que “a esquerda tem que entender que a direita assumiu esse país”.

Não obstante a forma superficial com que o pastor apresentou seus argumentos nessa entrevista, há um tema levantado por ele que merece ser visto com mais atenção e que deveria ter mais espaço na esfera pública e na agenda de discussões do Congresso Nacional, em particular na Comissão de Ciência, Tecnologia e Comunicação da Câmara dos Deputados. Trata-se da cota de filmes nacionais em serviços de streaming.

De modo tosco, Edilásio faz a seguinte observação na entrevista: “Eu acho que tem que ter uma revisão em cota de tela, tem que ser revisado isso, inclusive os streamings aí, Netflix, essas coisas que estão aí, que não tem nem muito filme brasileiro lá. Tem coreano, tem japonês, tem chinês, mas vai lá ver se tem filme brasileiro”. Apesar da retórica grosseira, ao menos nesse ponto ele tem razão: serviços de streaming, como a Netflix, precisam ser regulamentados por lei – como, aliás, já ocorre em diversos outros países.

Quando falamos em regulação do serviço de streaming, ou vídeo sob demanda, estamos pensando em dois eixos gerais: o conteúdo e a tributação. Com efeito, a parte da tributação já foi resolvida recentemente com a Lei Complementar 157/2016, que alterou as regras de cobrança do ISS, o Imposto Sobre Serviços. Pela lei, a empresa de streaming deve pagar impostos para a prefeitura da cidade em que fica a sede de sua empresa. No caso da Netflix, isso significa impostos para a prefeitura de São Paulo.

Se o eixo da regulação via tributação foi resolvido, o do conteúdo não foi. Em 2017, em trabalho apresentado no VIII Seminário Internacional de Políticas Culturais realizado na Fundação Casa de Rui Barbosa, tive a oportunidade de demonstrar, com Marina Schneider e Larissa Ormay, que a proposta de regulação do conteúdo dos serviços de vídeo sob demanda não é um privilégio do debate brasileiro – ou uma “jabuticaba”, como diz o senso comum. Pelo contrário, uma análise comparada nos permite observar que no cenário internacional já são encontrados diversos exemplos de regulações do VoD. Países como Alemanha, França, Espanha, Itália, Bélgica, República Tcheca, Polônia e Eslováquia já possuem mecanismos regulatórios nesse sentido. Para ficarmos em um único exemplo, na França o catálogo deve ter ao menos 60% de obras europeias e 40% de obras faladas em francês.

Seria saudável para o Brasil se a legislação garantisse espaço nesses serviços de streaming, como a Netflix, para produções nacionais. Diga-se de passagem que a Ancine presidida por Manoel Rangel – e que, talvez por desconhecimento mais profundo do tema, foi criticada por Edilásio na entrevista – já elaborou diversos estudos que mostram como essa regulação poderia ser feita. Uma parceria entre a Secretaria de Audiovisual, a Ancine e a Comissão de Ciência, Tecnologia e Comunicação da Câmara dos Deputados poderia facilmente transformar esses estudos em lei.

Em síntese, na agenda levantada pelo indicado para a Secretaria de Audiovisual do governo Bolsonaro, precisamos separar o joio do trigo. Por um lado, medidas de financiamento seletivo de determinadas religiões, como propõe Edilásio, precisam ser repudiadas. Filmes evangélicos devem disputar editais públicos, assim como filmes que tratem de temas de quaisquer outras religiões. Mas isso não deve ser feito através de editais seletivos ou direcionados. Por outro lado, sua proposta de regulação de serviços de streaming com a inclusão de cotas de conteúdo nacional deve ser valorizada. A Europa já faz isso. É hora do Brasil também fazer.

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Theófilo Rodrigues é cientista político e pesquisador de pós-doutorado na UENF.