Wednesday, 09 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Não leia os comentários: a violência digital contra jornalistas voltou com força nos debates e entrevistas

(Imagem de wal_172619 por Pixabay)

Sabatinas e debates com os candidatos às prefeituras das principais capitais brasileiras já sinalizaram que as organizações ligadas à liberdade de expressão e à imprensa não devem baixar a guarda quando se trata de conter a violência contra os jornalistas. As hostilidades que marcaram os anos do governo Bolsonaro – principalmente aquelas endereçadas às mulheres – aparecem fortes no “Marçalismo” e encontram ressonância em alguns setores da esquerda. Uma estratégia para dimensionar esses ataques é pôr a lente nos comentários dos leitores que se manifestam em reportagens sobre os debates e nas transmissões ao vivo pelo YouTube.

Quando repórteres e comentaristas ocupam os espaços de poder e questionam políticos, são chamadas de “veias” ou o seu extremo, “jornalistazinha”, termo usado pelo próprio Pablo Marçal (PRTB) na contenda com Tábata Amaral (PSB), em agosto, no primeiro debate da Band. Em outro momento, no UOL, quando Raquel Landim questionou aspectos contraditórios no plano de Marçal, foi chamada pelos seguidores do candidato de “arrogante”, “pré-histórica” e que está “sempre querendo morder”. Ao comentarem sobre o tom agressivo do candidato nos debates, os usuários das redes afirmam que tanto Landim quanto a mediadora Fabíola Cidral teriam “medo” de Marçal. Um sinal de que as agressões contra a imprensa viraram uma agenda de campanha. 

Quando esteve no centro do Roda Viva, o ex-coach se referia aos jornalistas em tom de chacota e ironia, em particular a Vera Magalhães e a Malu Gaspar, ambas do Grupo Globo. As “lacrações” serviram não apenas como “cortes” para as redes sociais. Alimentaram uma enxurrada de comentários nos quais as mulheres recebem outro carimbo: “parciais”, adjetivos também usado para atacar os homens jornalistas. Como várias pesquisas já mostraram, a hostilização orquestrada no ambiente digital tem interseccionalidades com gênero e raça. Após o programa da TV Cultura, Pedro Borges, do Alma Preta, se viu obrigado a fechar suas redes sociais depois de receber posts racistas e criminosos. A jornalista Amanda Audi também foi assediada com ofensas de gênero.

No debate mais recente, promovido pelo Grupo Flow na segunda-feira, o mediador Carlos Tramontina foi xingado por partidários de Marçal por supostamente ter sido “parcial” como típico “ex-global” ao não expulsar Datena e exigir que Marçal abandonasse o púlpito. E a jornalista Hellen Braun teve seu perfil pessoal no Instagram coberto por críticas e acusações de que havia fraudado o sorteio dos nomes dos participantes do debate paulistano do Flow. É que os apoiadores de Marçal queriam desenhar a narrativa de que seu candidato, que acabou expulso, estava sendo injustiçado. No comportamento das redes, novamente nutre-se a ideia de que o influenciador luta contra a imprensa e por isso precisa ser apoiado. 

As eleições de 2024 mostram novamente uma naturalização perigosa com que essa violência tem se repetido no Brasil. Monitoramento semanal feito pela Coalizão em Defesa do Jornalismo nas eleições em nove capitais mostra 119 postagens com ataques a jornalistas e comunicadores, na semana entre 5 a 11 de setembro. Vera Magalhães, apresentadora do Roda Viva, da TV Cultura, concentra a maior parte das ofensas com o intuito de desqualificá-la, com 34 ataques. 

Mesmo com o X bloqueado no Brasil, por onde escoa o esgoto que visa destruir carreiras, a avalanche de discursos estigmatizantes continua, segundo o monitoramento:

“Enquanto os termos mais usados para ofender a jornalista Vera Magalhães e seu veículo foram ‘jornalistas militantes’, ‘infantil’, ‘imprensa podre e militante’ e ‘comunista’, os usados para desqualificar o trabalho de Leonardo Sakamoto e da imprensa foram ‘mídia podre’, ‘jornalismo tendencioso’, ‘extrema imprensa’ e ‘imprensa militante’. Os comentários eram seguidos por expressões de apoio ao candidato Pablo Marçal”. 

A coalizão é formada por: Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), Ajor (Associação de Jornalismo Digital), Artigo 19, CPJ (Comitê para a Proteção de Jornalistas), Fenaj (Federação Nacional de Jornalistas), Instituto Palavra Aberta, Instituto Vladimir Herzog, Instituto Tornavoz, Intervozes, Jeduca (Associação de Jornalistas de Educação) e RSF (Repórteres Sem Fronteiras).

Estudos internacionais publicados nos últimos anos, como o Relatório Chilling, do Centro Internacional para Jornalistas em parceria com a UNESCO, mostrou que 73% das jornalistas ouvidas em 15 países já sofreram ataques na esfera digital. Como os ciclos eleitorais são realizados a cada dois anos no Brasil, temos mais dois anos para tentar colocar de pé ações punitivas contra esses agressores. Até porque, entre os intervalos do pleito, as milícias digitais são reorganizadas e reconfiguradas. As mulheres jornalistas vivem em alerta permanente. Ficam adoecidas a conta-gotas, e seguem sendo vítimas da polarização e do escárnio provocativo.

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Rafaela Sinderski  e Letícia Kleim monitoram violência contra jornalistas na Abraji. Maria Esperidião pesquisa gênero, desinformação e violência online para o ICFJ (Centro Internacional para Jornalistas).