Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O Brasil entra em campo

Todos lembram da cena comovente, após a virada de 3 a 2 contra os Estados Unidos no último domingo de junho, na final da Copa das Confederações, em Joanesburgo: os jogadores da seleção brasileira ajoelhados no gramado, erguendo e deitando várias vezes a testa no chão, voltados para Meca, erguendo as duas mãos em agradecimento às graças do profeta Maomé…

Não lembram? Bem, mas todos se recordam de uma cena parecida: os jogadores ajoelhados e abraçados, em círculo, rezando a ave-maria sob a liderança do melhor jogador da Copa, Kaká, que exibia radiante os dizeres da camiseta branca que carregava sob o uniforme da Seleção: ‘Eu pertenço a Jesus’. Escrito em inglês, para que o mundo todo visse e entendesse pela TV.

A Fifa viu – e não entendeu. Fez um alerta à CBF para ‘moderar’ a atitude dos jogadores mais religiosos e só não puniu os atletas porque a rezadeira aconteceu após o apito final do juiz. ‘Religião não tem lugar no futebol’, disse Jim Stjerne Hansen, diretor da Associação de futebol da Dinamarca, que reclamou do exagero brasileiro à Fifa. ‘Misturar religião e esporte daquela maneira foi quase criar um evento religioso em si. Não podemos deixar a política entrar no futebol, e a religião também precisa ficar fora’, disse o cartola ao jornal Politiken, de Copenhague.

A presença ubíqua de Cristo

No Brasil, todo mundo viu, mas ninguém estranhou, nem reclamou – como certamente fariam, com indignação, se houvesse uma explícita manifestação muçulmana em campo. Aquele gesto de contrição planetária no sul da África, via satélite, acabou revelando um pouco mais de um fenômeno cada vez menos sutil da realidade brasileira: a invasão da religião nas instâncias de poder, nas frestas da sociedade, sob o patrocínio ou complacência das autoridades, atropelando o caráter laico que deveria prevalecer no país há 120 anos, desde a proclamação da República.

O pobre e difamado Piauí deu, no início de julho, um belo exemplo de cidadania. Atendendo representação de 14 entidades da sociedade civil, o Ministério Público em Teresina determinou a retirada de símbolos religiosos dos prédios públicos no estado, fechando capelas instaladas nos edifícios dos governos municipal, estadual e federal. O promotor Edílson Martins prepara uma ação civil, em caso extremo, para garantir o Inciso I do Art. 19 da Constituição Federal, que proíbe cultos religiosos ou igrejas no espaço público. No início do ano, no Rio de Janeiro, outra boa manifestação de respeito à lei: o presidente do Tribunal de Justiça do Estado, Luiz Zveiter, ordenou a retirada dos crucifixos que adornavam o prédio e transformou em ecumênica a capela católica ali alojada.

Esta assepsia ainda não chegou ao centro do poder, em Brasília. A figura de Jesus Cristo é onipresente nos gabinetes e salões mais importantes da capital. Um Cristo esculpido em madeira adorna a parede do gabinete do presidente Lula, no Palácio do Planalto, tendo à direita um vaso de plantas e à esquerda uma ímpia TV de plasma de 46 polegadas. Um crucifixo com a imagem de Jesus, mais discreto, ocupa o centro da parede às costas da cadeira do presidente José Sarney na Mesa diretora do Senado Federal, alguns centímetros acima de um busto de Ruy Barbosa. No plenário da Câmara dos Deputados, atrás da poltrona onde senta o presidente Michel Temer, outro crucifixo. Na sala de sessões do Supremo Tribunal Federal, o presidente Gilmar Mendes tem às costas o brasão com as armas da República. Mas, dois metros à esquerda, lá está a cruz de Cristo na parede.

‘Deus seja louvado’

‘Não é porque o país tem uma maioria de católicos que minorias de espíritas, judeus, muçulmanos precisam engolir um símbolo cristão’, condena Leonardo Sakamoto, doutor em Ciências Políticas pela Universidade de São Paulo. ‘As denominações cristãs são parte interessada em várias polêmicas judiciais – desde pesquisas com células-tronco ao direito ao aborto. Se esses elementos estão escancaradamente presentes nos locais onde são tomadas as decisões, sem que ninguém se mexa para retirá-las, como garantir que as decisões serão isentas?’, pergunta Sakamoto, representante da ONG Repórter Brasil na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae).

A religião se faz presente pela imagem e pela voz no plenário azul-celeste do Senado Federal. ‘Invocando a proteção de Deus, declaro abertos os trabalhos’, proclama o presidente da Mesa, religiosamente às 14h, quando se abre a Ordem do Dia na casa. Deve ser um deus ecumênico porque a saudação nunca mereceu nenhum aparte dos nobres senadores. E certamente não será o católico José Sarney, presidente do Senado, que irá mudar este hábito. Quando presidente da República, em 1986, Sarney implantou uma nova moeda, o cruzado, e imprimiu nas cédulas uma pia novidade: a inscrição ‘Deus seja louvado’. Como sempre, era cópia atrasada dos estadunidenses. Em 1853, quando o Norte liberal guerreava contra o Sul escravocrata, o presidente Abraham Lincoln buscou reforço divino gravando no dólar a expressão In God We Trust (em Deus confiamos). Um século depois, a expressão das moedas passou para a cédula em papel. Em 1954, inebriado pelo macartismo vigente, o presidente Dwight Eisenhower mudou o lema nacional que nascera da união das 13 colônias na Guerra da Indepedência – E Pluribus Unum (de muitos, um) – para invocar a santa proteção na cruzada contra o ateísmo vermelho, imprimindo no verde das notas de dólar a louvação a Deus.

A divina providência de Sarney não resistiu ao sucessor. As notas do cruzeiro, no efêmero governo de Fernando Collor, perderam a inscrição ‘Deus seja louvado’. Seria talvez um prenúncio dos céus naqueles tempos pouco católicos em que o dinheiro circulava pelas mãos impuras de Paulo César Farias e outros infiéis da igrejinha collorida. Com a purificação do poder pelo impeachment, a inscrição voltou no governo-tampão de Itamar Franco. Por obra e graça de um respeitável pensador de esquerda, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, ministro da Fazenda e futuro presidente, que justificou o pedido ao Banco Central em março de 1994: ‘A frase é uma resposta à religiosidade do nosso povo.’ Com a inflação debelada e a economia estabilizada, FHC entoou como nunca, nas cédulas do real, a divisa daqueles inéditos tempos de bonança: ‘Deus seja louvado’.

O veto ao véu islâmico

Os homens pincelaram Deus no dinheiro ecumênico que paira sobre nós e infiltraram Deus no preâmbulo da Constituição cidadã nascida em 1988: ‘Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático (…) promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição.’ Não invocaram Zeus, Abraão, Alá, Brama, Zoroastro, Jeová, Osíris, Buda, Confúcio… Cravaram logo um deus suprapartidário, acima de legendas, crenças ou seitas, para garantir um consenso celestial imune a vetos ou dissidências. Tentaram abarcar todos os fiéis, de todas as siglas, mas esqueceram os ateus. O atual presidente dos Estados Unidos, não. Sucessor de George W. Bush, um presidente conservador que encarnou como ninguém o fundamentalismo extremado da direita religiosa no país, Barack Obama foi o primeiro, entre 44 ocupantes da Casa Branca, a tomar posse com menção explícita ao ateísmo: ‘Somos uma nação de cristãos e muçulmanos, judeus e hindus – e das pessoas que não possuem crenças’, lembrou Obama em seu discurso.

No mundo civilizado, apesar do radicalismo religioso que sobrevoa a política, percebe-se um esforço crescente para separar o Estado da religião, a cidadania da fé. Em 2004, um debate agitou a França, berço da igualdade, liberdade e fraternidade: o uso da burka, o véu muçulmano que cobre as mulheres. Uma lei proibiu a vestimenta em locais públicos, especialmente escolas. ‘A burka não é bem-vinda na França’, proclamou o presidente Nicolas Sarkozy, um advogado conservador de origem judaica e criação católica. ‘Ela é um símbolo de servidão que contraria a idéia da República francesa sobre a dignidade da mulher’, completou Sarkozy, colocando o caráter laico do Estado acima dos interesses dos 5 milhões de muçulmanos do país, cerca de 10% da população da França.

Em 2006, a Holanda, governada por uma coligação cristã-democrata com liberais de direita, vetou a burka em público, alegando ‘perigo para a ordem pública e para a segurança nacional’. A ministra da Emigração, Rita Verdonk, justificou a restrição: ‘É muito importante que possamos olhar cara a cara para nos comunicarmos.’ Na Alemanha, coração da Europa e santuário da Reforma protestante, metade dos 16 estados proibiu as professoras muçulmanas de usar lenço ou véu islâmico nas salas de aula. No Reino Unido, a professora Ayshah Azmi foi suspensa depois de se recusar a dar aulas sem o véu. Agora, escolas e hospitais britânicos estudam a proibição do niqab, o véu que cobre todo o rosto, com exceção dos olhos.

Um acordo ‘gravíssimo’

Na contramão do mundo, o presidente Lula entra no campo religioso longe dos olhos da sociedade brasileira. Em novembro de 2008, ele foi a Roma e viu o papa. Foram 24 minutos de conversa privada no escritório privativo de Bento 16. ‘Muito obrigado, presidente, pelo acordo que será assinado hoje’, agradeceu o representante de Deus na Terra. Não era um encontro de estadistas. Era uma reunião do chefe supremo da Igreja com o líder popular da maior nação católica do mundo (125 milhões de fiéis entre 190 milhões de brasileiros). O agradecimento tinha sentido porque o Brasil se rendia a anos de pressão do Vaticano para ampliar a força do ensino religioso nas escolas públicas do ensino fundamental. O papa não conseguiu tornar ‘obrigatório’ o ensino, mas formalizou uma intrusão impensável nas escolas de um país que se diz laico e soberano.

O arcebispo Dominique Mamberti, chanceler das Relações Exteriores do Vaticano, tentou disfarçar: ‘Não são privilégios porque não se pode chamar de privilégio o reconhecimento de uma realidade social tão importante como é hoje em dia a Igreja católica no Brasil’. Diplomático, o bispo defendeu-se: ‘O acordo não afeta em nada os cidadãos de outros credos, já que garante o pluralismo religioso, assim como o laicismo saudável’. O Brasil não se espantou com a condicionante, talvez por ter padecido muito tempo da ‘democracia relativa’ dos militares, que guarda certa isonomia com o ‘laicismo saudável’ dos padres.

O acordo de 20 artigos parecia inspirado pelos diabólicos atos secretos do Senado brasileiro: estranhamente, não foi discutido previamente com o principal interessado, a sociedade brasileira. ‘É uma autêntica Concordata com a Santa Sé que, além de ter sido preparada na clandestinidade, sem qualquer aviso ou debate, confronta o espírito da Carta Magna e os fundamentos de um Estado secular’, protestou o jornalista Alberto Dines. ‘Por que o sigilo? Que tipo de pressão o governo sofreu? Como o presidente Lula faz isso sem abrir para a discussão?’, perguntou a professora Roseli Fischmann, que coordena há 20 anos o grupo de pesquisa ‘Discriminação, Preconceito, Estigma’ da Universidade de São Paulo (USP). Falando ao portal iG, Fischmann classificou o acordo de ‘gravíssimo’ pelo que representa: ‘É uma violência à pluralidade de crenças da população, fere a democracia e cria cidadãos de segunda classe – o católico e o não-católico’.

O ensino religioso

Por trás dos sorrisos de Bento e de Lula paira uma nuvem pesada, segundo a professora: ‘O acordo não contempla a liberdade de consciência. Não querer dar religião para os filhos é o direito da família. Isso não os torna menos cidadãos brasileiros. Ser ateu ou agnóstico é um direito de foro íntimo. É absolutamente estigmatizador e criará a cultura de que não é íntegro quem não teve ensino religioso’.

Um dos maiores riscos, segundo a pesquisadora da USP, está no final do documento, no Art. 18, que reza: ‘O presente acordo poderá ser complementado’.

Fischmann traduz a ameaça ali inoculada: ‘Isso dá espaço para que a Igreja intervenha em questões como o aborto, casamento de pessoas do mesmo sexo, pesquisas com células-tronco, entre outras’. A professora deposita sua fé no Congresso Nacional, que precisa ratificar o acordo quase confessional firmado entre Lula e Bento 16: ‘Se ele passar no Parlamento, o Brasil dá poder à Igreja e veta a si mesmo. É preciso uma grande movimentação para que os parlamentares compreendam que o acordo contraria a Constituição e volta o Brasil 120 atrás, quando a República separou Igreja e Estado’.

O jornal Correio Braziliense mostrou em três edições (12 a 14 de julho) que os temores insinuados em Roma já assombram as escolas brasileiras. Um estudo inédito – ‘Ensino religioso: qual o pluralismo?’ –, financiado pela Universidade de Brasília (UnB) e pela Comissão de Cidadania e Reprodução, prova que a Igreja já transborda os limites da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), que determina como facultativo o ensino da religião e limita suas aulas a alunos do ensino fundamental. Na prática, porém, só metade dos 27 estados brasileiros cumpre a lei, restringindo o ensino religioso às escolas da 1ª à 8ª série, sem incluir a disciplina na carga obrigatória de 800 horas anuais. Oito estados (entre eles RS, PR, BA e DF) estendem as aulas de religião ao ensino médio ou infantil, outros oito (entre eles SP, PE, CE e PA) contabilizam a disciplina na carga obrigatória, desrespeitando o caráter facultativo da lei.

Ajoelhar e rezar não é salvação

A mixórdia é geral. Religião é a única disciplina que não se submete às orientações do Ministério da Educação (MEC) que, por isso, mesmo não tem nenhum material didático a recomendar. Os professores de religião de 14 estados são contratados sem seleção pública. Em Santa Catarina, um dos objetivo da disciplina é o ensino do ‘mistério’ – seja lá o que isso signifique; em Tocantins, o requisito para contratar o professor de religião é ‘irrepreensível conduta ética e moral’ – condição que vetaria muitos senadores e deputados do atual Congresso.

A União transferiu para os Estados a normatização do ensino religioso e, com isso, aumentou a esbórnia. O ensino religioso é regulamentado por lei em três estados, por decreto em quatro, por parecer em dois, por deliberação em outros dois, por instrução em um e por resoluções em 15 estados. Resumo da missa: o estudo ‘Ensino Religioso’ da UnB será entregue ao ministro Celso de Mello, do STF, que julga uma ação de inconstitucionalidade da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) contra uma lei do Rio de Janeiro que fere a separação entre o ensino e a religião.

A overdose de proselitismo religioso transborda dos campos de futebol, das escolas e dos plenários políticos, para invadir o espaço das emissoras de TV de sinal aberto. A voraz Igreja Universal não se contenta com sua Rede Record. Amplia seus sermões pelas redes Mulher, Família e CNT e deita louvação em emissoras de rádio de 16 das maiores cidades de São Paulo e sete do Rio de Janeiro. A Rede Bandeirantes, toda santa noite, reserva o horário nobre das 21h para o Show da Fé, do missionário R.R. Soares, líder da Igreja Internacional da Graça. A concessão pública de TV acaba sendo desviada para programas de doutrinação e escapismo espiritual, que misturam copos d´água abençoados, exorcismos no palco, pastores clonados e uma virtual ‘tele-bênção’.

Os nomes das atrações televangélicas que invadem as manhãs, noites e madrugadas explicam tudo: Jejum das Causas Impossíveis, Igreja Internacional da Graça de Deus, Catedral Internacional da Bênção, Terapia da Família, Igreja Viva, Ponto de Luz, Fala que eu Te Escuto, Santo Culto em seu Lar e Espaço da Vida Vitoriosa, entre outros.

Com o cerco crescente da religião – na sala de TV, na sala de aula, nos salões do Congresso e nos gabinetes presidenciais –, parece não restar mais espaço livre, nem momentos, nem cidadãos imunes à massiva doutrinação deste fundamentalismo sem fronteiras e sem limites, virtual e real.

Ajoelhar e rezar, como faz a Seleção brasileira, não é a solução. Muito menos a salvação.

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Jornalista