Sábado, 19 de abril de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1334

Século Diário e o jornalismo crítico independente no ES

(Foto: Reprodução)

Tema da dissertação “Duas décadas de resistência: o jornalismo autoenunciado independente do digital Século Diário contra silenciamentos no Espírito Santo, o jornal capixaba Século Diário completou 25 anos em março de 2025. Apresentada por mim, sob orientação do Professor Dr. Victor Gentilli, à Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), em 2020, a pesquisa foi a primeira rompendo o ineditismo científico do objeto e com a cultura do silêncio sobre este tipo de jornalismo na academia em território capixaba. Até então, o lapso temporal da falta de estudos científicos sobre ambos permeava quase duas décadas (2000- 2018), tão longevo quanto o próprio jornal.

priori, perante a matriz de pensamento da mídia hegemônica baseada na neutralidade e objetividade de um jornalismo meramente declaratório, o Século deixa claro já em seu editorial que faz jornalismo com foco na visão interpretativa e investigativa dos fatos, o que já sinalizava uma postura pretensamente independente e crítica por meio do seu conteúdo. Contudo, a partir da discussão sobre as vertentes do alternativo/popular/independente (caminhos do Estado da Arte) junto com o resgate histórico das lutas do jornal, a verificação do lugar de construção de sentido que dá este tom de “independência” só foi possível pela análise dos aspectos estruturais do negócio jornalístico como pela produção noticiosa (ambos conjuntamente).

A todo momento, com o desenrolar da pesquisa, surgiam questionamentos: como um jornal com estrutura empresarial e que sobrevive de publicidade constrói sua independência? Afinal, o que seria essa independência: de quê ou de quem? O que significa ser independente dentro do modo industrial de produzir notícia? Trazemos aqui alguns pontos da pesquisa.

Fundado em março de 2000, o jornal online foi originado da extinta Revista SÉCULO cujo slogan era “O Espírito Santo em Revista”. Veículo impresso com características predominantes de mídia tradicional, inclusive, a Revista chegou a trazer publicidade de A Gazeta (concorrente) enfatizando-a como o maior conglomerado do Estado. A postura editorial da revista era claramente a favor dos povos originários, como os indígenas e os quilombolas, e contra os agentes exploratórios do capital estrangeiro (petroleiras, mineradoras etc), mas ironicamente sua publicidade também advinha destas mesmas empresas e do próprio governo do Estado.

Na transição da Revista Século (impresso) para o site Século Diário (o nome de ambos remete justamente ao início do século XXI), a bandeira do Meio Ambiente/Agroecologia permaneceu forte, tanto que o Século continua sendo o único veículo capixaba que possui uma editoria exclusiva dedicada à área nesses moldes. Além de Meio Ambiente – analisada na pesquisa – Cultura, Sindicatos e Direitos também são editorias do jornal. Entretanto, ao contrário da Revista, o Século Diário (site) não aceita publicidade do que o veículo denomina poluidoras, sendo a proibição algo inegociável para os donos, pois, segundo eles, fere os princípios do jornal. Enquanto que a própria A Gazeta– cujo conteúdo já foi abordado anteriormente neste Observatório, por exemplo, abordaria o meio ambiente, mas a partir dos interesses do agronegócio.

Jornal “a cara do dono”: defesa do meio ambiente e do bom jornalismo íntegro social

No meio do caminho ao construir a pesquisa, entre a Revista Século e o nascimento do site Século Diário, há uma figura emblemática: o diretor fundador de ambos, jornalista Rogério Medeiros, com uma trajetória que se confunde com a própria identidade do veículo. Jornalista da época antes da profissionalização, filho de um desbravador da indústria madeireira das terras capixabas, Rogério passou por diversos veículos nacionais, como o Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil, até ser contratado como fotógrafo por outro jornal capixaba tradicional, A Tribuna, em 1963, sendo o primeiro repórter fotográfico do Espírito Santo.

Como fotojornalista, é autor das obras Espírito Santo, maldição ecológica (1983) em que Rogério Medeiros critica o quadro de destruição ecológica advindo do modelo de modernização imposto pelo Estado Brasileiro aliado à frente civilizatória da expansão capitalista internacional na década de 1980. Na obra, são denunciados o plantio de eucaliptos, que já intensificava a degradação do solo e desertificação do Espírito Santo, e a atuação de madeireiras no desmatamento exagerado, que causou o câncer ecológico nos pomeranos, o glaucoma nos negros do município de Conceição da Barra (sul do ES) e a fuga dos indígenas em busca da “Terra sem Males”.

(Foto: Reprodução)

Ainda como escritor-intelectual pela difusão do multiculturalismo capixaba, Rogério Medeiros também escreve Tradições populares do Espírito Santo (fotos com texto de Hermógenes Lima Fonseca, Vitória, 1991); Ruschi, o agitador ecológico (Rio de Janeiro: Record, 1995), além de Espírito Santo, encontro de raças (Vitória, 1997), sobre diversidade da identidade no Espírito Santo, o que o jornalista denomina “caldeirão étnico” a partir de um olhar apurado e convicto da riqueza sociocultural do estado. Em 2012, publica Pommerland – A Saga Pomerana no Espírito Santo junto com os fotógrafos Ervin Kerckhoff, Emilio Schultz e Apoena Medeiros (seu filho, também repórter fotográfico).

Além de fotojornalista e escritor premiado, Rogério Medeiros é um dos fundadores do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Espírito Santo (Sindijornalistas-ES), do qual foi seu primeiro Presidente, com mandato entre 1979 e 1981. Foi na sua gestão que houve a assinatura do primeiro acordo de trabalho com as empresas de comunicação e a categoria conquistou o piso salarial de cinco salários mínimos, na época. O Espírito Santo foi o primeiro estado do país a conquistar tal valorização salarial.

Rogério Medeiros também é fundador do Partido dos Trabalhadores no ES, do qual se desligou em 1997. Antes, em 1988 propôs a criação de uma Lei de incentivo e fomento à cultura, que, mais tarde originaria, em 05 de junho de 1991, a Lei municipal Rubem Braga (nº 3.730/91) quando à frente do cargo de Vice-Prefeito da cidade de Vitória (capital) pelo Partido dos Trabalhadores (PT), na gestão de Vitor Buaiz. Como política pública de incentivo fiscal, trata-se da segunda Lei criada para promover a cultura no Brasil, servindo de modelo para novas medidas e estímulos às políticas culturais.

A crise de 2017 e a saída do “núcleo duro” da redação: consequências da censura

Com conteúdo 100% autoral – sem agências de notícias –, cobertura essencialmente regional e com equipe própria, o jornalismo crítico autointitulado independente do Século Diário sempre enfrentou dificuldades financeiras principalmente por “tomar partido”, problematizando as questões políticas, culturais e socioeconômicas pelas “margens” a favor dos segmentos marginalizados e/ou excluídos socialmente. Símbolo de resistência, vem sobrevivendo no enfrentamento à violência jurídica pela quantidade de processos judiciais, tentativas de silenciamento (censura) por parte do aparato do Estado contra o jornal digital, que, desembocando na violência financeira (asfixia com fuga de anunciantes), inevitavelmente afetou sua sustentabilidade e resultou na saída do “núcleo duro” (cerca de cinco jornalistas, incluindo um editor) da redação em 2017 e em mudanças no modelo do negócio jornalístico. Pelo relato de um dos entrevistados da pesquisa, mediante as dificuldades, a redação (jornalistas profissionais assalariados) chegou a passar quatro meses sem receber pagamento, mas mantinha-se firme na convicção de um jornalismo dito independente.

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Pós-crise de 2017, o Século continua a sobreviver economicamente por meio de publicidade em campanhas institucionais. Porém, a editora e diretora de redação Manaíra Medeiros, uma das entrevistadas da pesquisa – jornalista por formação, filha do proprietário, gatekeeper do Século e uma das remanescentes da crise de 2017 – enfatiza que órgãos públicos são informados claramente da linha editorial do jornal, não cabendo qualquer negociação neste sentido. Casos de empresas que o Século tece pela ótica crítica como poluidoras são proibidas de veiculação publicitária no jornal: Arcelor e suas controladas, a exemplo de Sol Coqueria; Fibria/ Suzano; Vale/ Samarco; Placas do Brasil; Fundação Renova etc.

Dentre as soluções para a crise levantadas em conversas, a primeira foi o financiamento coletivo crowdfunding (ou “vaquinha virtual”, em português). A segunda, debatida pelo próprio núcleo jornalístico, é o financiamento coletivo via fundações, até pelo capital simbólico do jornal criado em duas décadas de acompanhamento crítico às questões ambientais junto aos leitores. Foi proposta a transformação da empresa (até então sociedade limitada na época) numa ONG, um coletivo de jornalistas, como faz as ditas independentes Ponte Jornalismo e a Agência Pública, o que poderia viabilizar a captação de recursos. Porém, não houve entendimento entre o grupo de jornalistas e os proprietários do jornal, resultando na saída do grupo.

As perseguições político-judiciais intensificaram-se após a publicação da obra Um novo Espírito Santo: Onde a corrupção veste toga (2010), de autoria de Rogério Medeiros e de outro jornalista experiente, Stenka do Amaral Calado. Trata-se de uma síntese da cobertura do Século Diário sobre a Operação Naufrágio, ação conjunta da Polícia Federal e do Ministério Público Federal (MPF), sobre a venda de sentenças, nepotismo e irregularidades no Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES). Tais retaliações contra o jornal foram denunciadas, inclusive, por entidades internacionais como FreedomHouse, Centro Knight para o Jornalismo nas Américas e o Repórter Sem Fronteiras.

Jornalismo premiado pela potência da agricultura familiar

Em 2024, o Século Diário conquista o 1º lugar no 17º Prêmio Jornalismo Cooperativista, na categoria webjornalismo, com a reportagem “Cooperativismo promove sustentabilidade, empodera mulheres e combate o êxodo rural”, de autoria da repórter Elaine Dal Gobbo. O prêmio é um dos principais do Estado na área e organizado pelo Sistema OCB/ES- Organização das Cooperativas Brasileiras.

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Priscila Bueker Sarmento é jornalista, Mestra em Comunicação e Territorialidades pela Universidade Federal do Espírito Santo e integrante do Núcleo de Pesquisa e Ação Observatório da Mídia: direitos humanos, políticas, sistemas e transparência (UFES/CNPq).