Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A vibe brasileira da Vice

selo_rev_jorn_espmA grande cutucada que o site da revista de atualidades Vice vem dando nos negócios globais de mídia não aportou no Brasil, mas a atuação do veículo aqui já mostra certa diferença em relação ao modo de fazer e vender jornalismo – principalmente vender. A filial local, depois de quase sete anos no país, ainda tem presença discreta e trouxe da nave-mãe uma receita prática de sobrevivência: produzir conteúdo jornalístico e revestir parte dele de produto comercial à disposição das marcas. É algo que a comunidade jornalística nacional sempre viu com algum desprezo, sentada sobre seus problemas de caixa e insolvência.

Vice Brasil

Home page da Vice Brasil em 4/4/2016

O branded content já vem dando as suas caras na mídia brasileira. Todos os grandes veículos já montaram suas áreas para comercialização de conteúdos editoriais sob encomenda de empresas. Antes, os informes publicitários e os publieditoriais eram veiculados de forma a distingui-los do restante do material jornalístico, delimitando o território da publicidade e do marketing. A barreira foi rompida, ainda que haja certo pudor na apresentação. O leitor não é enganado, mas se não prestar muita atenção leva gato por lebre, sem nenhuma conotação pejorativa nessa comparação.

Para Daniel Conti, CEO da Vice Brasil, o branded content faz parte da maneira como o veículo se comunica com sua audiência, o seu leitorado – e o mercado anunciante brasileiro percebeu isso, ainda que com alguma demora. E a maneira como a Vice faz, segundo o executivo, reflete de modo autêntico “os hábitos, valores e linguagem” do público-alvo: os millennials, homens e mulheres nascidos entre os anos 1980 e meados de 1990, boa parte nativos digitais e que cresceram sob as benesses de um período econômico mais próspero.

Mas os millennials não são aquela geração que, em menor ou maior grau e dependendo das regiões em que vivem no mundo, tem mais apreço por valores e menos por marcas, busca qualidade, ética e responsabilidade social em vez de grifes? Bom, é o que dizem seus representantes, enquanto fazem fila na porta da loja da Apple para adquirir as últimas novidades em smartphones.

No Brasil, a Vice tem realizado projetos para marcas que querem falar com os millennials daqui, como Nike, Skol, Ray-Ban e Smirnoff. São ações que envolvem a cobertura jornalística de eventos, cujas reportagens trazem a informação explícita sobre o patrocínio, ou a produção de vídeos para exibição no site ou apenas nos canais próprios das empresas. O veículo se tornou assim também uma agência de criação de marketing e, para isso, conta com seu conhecimento do que querem os millennials, de sua linguagem e de seus hábitos de consumo.

Em fevereiro, por exemplo, a Vice veiculou uma websérie global patrocinada pela Volkswagen. Em quatro episódios de pouco mais de quatro minutos cada, a peça mostrou andanças da DJ Throwing Shade, que pensa em sair de Londres e morar em outra cidade europeia. Ela viaja para Lisboa e Leipzig, onde circula discretamente em automóveis Volkswagen e visita locais da cena musical e cultural. Produção muito bem-cuidada, aborda uma questão existencial que afeta boa parte dos jovens (morar em outra cidade, em outro país) e centra-se numa personagem icônica, que faz parte dos interesses desse público. A DJ se pergunta onde viveria melhor, com menos dinheiro, num ambiente artístico inspirador e com possibilidade de exercer seu trabalho. Matou a pau.

Jovens escrevendo para jovens

A começar pelas pautas, a Vice Brasil segue o receituário editorial global do grupo. Muito provavelmente, não se encontrarão nos demais veículos reportagens com abordagens descaradas e inusitadas sobre sexo e drogas ou representativas do jornalismo imersivo preconizado pela publicação e que coloca seus jornalistas no meio (literalmente) de guerras. Aqui no Brasil, os seus jornalistas vão para o meio do protesto, quase tomam porrada da polícia e ficam “putos” com a truculência. Seguem para a periferia conflagrada de São Paulo e contam histórias cruas de medo e violência.

Segundo Fernanda Negrini, diretora executiva de Conteúdo, a Vice Brasil cobre “assuntos diversos que outros veículos não cobrem o suficiente e cobre assuntos populares com uma abordagem original”. O veículo publica regularmente reportagens sobre jovens fotógrafos brasileiros, literatura, quadrinhos, sexo, cena underground, meio ambiente, moda e cultura em geral.

A linguagem dos textos, dos longos aos menores, é cuidadosamente displicente, arrogante, chula, às vezes tudo junto. Não dá para ler, obviamente, com as lentes do jornalismo de precisão e procurando a correção do idioma. “Se for um texto de ‘jornalismo de terno e gravata’ não vai funcionar”, diz Fernanda. Ao mesmo tempo, se um dos colaboradores do site tentar forçar nas gírias, por exemplo, “o resultado também não vai ser bom”, acrescenta a jornalista.

A redação da Vice Brasil é composta de 15 jovens jornalistas, todos com um jeitão meio hipster. Eles trabalham numa espaçosa casa de três andares no bairro de Moema, na zona sul de São Paulo. “É importante que o profissional se identifique com o nosso conteúdo e tenha uma sacada da forma, que é o que nos diferencia como veículo. Na grande maioria dos casos, são jovens escrevendo para jovens”, afirma. Talvez seja essa a característica que mais bem defina o que é a Vice e que determina seu sucesso nos mais de 30 países em que está presente.

Esses jornalistas produzem os 30% de conteúdo nacional veiculado no site. Os outros 70% são matérias traduzidas, publicadas pela rede global. A operação brasileira pretende investir mais em produção local, mas essa relação de 30% por 70% não deve ser alterada. Segundo a diretora, o leitor da Vice não faz distinção entre as origens das reportagens e tem forte demanda por conteúdo global.

Fernanda diz que há equipes diferentes para geração de conteúdo jornalístico e para publicidade. Alguns membros da equipe editorial eventualmente fazem a curadoria de alguns projetos de marca e colaboram com publicidade nativa, segundo a diretora, que responde pelas duas frentes. No total, a Vice Brasil emprega 70 funcionários – além dos jornalistas, há profissionais na área comercial, produção de vídeos e eventos, digital e business intelligence (BI).

Mais “share” do que “like”

Nascida no impresso e crescida no ambiente digital, a Vice diz que seus leitores têm modos diversificados de leitura. Daí publicar apenas um texto longo por dia, apresentar as informações em formatos variados, como reportagens fotográficas, entrevistas curtas e vídeos. Pesquisa feita pela publicação no final do ano passado constatou que os hábitos de consumo e navegação de seu público variam de acordo com a plataforma em que o conteúdo é acessado. Hoje a maioria da audiência acessa o site via aparelhos mobile e tem preferência por textos com fotos.

No Brasil, a Vice opera o site principal vice.com e mais quatro “verticais”, como são chamados os canais especializados: Noisey (música), Thump (música eletrônica), Motherboard (cultura da ciência e tecnologia) e The Creators Project (arte, criatividade e tecnologia). O foco nas plataformas digitais levou ao fim da distribuição da revista impressa, que circulava gratuitamente em locais frequentados pelos leitores. Ela foi transformada em projeto especial.

No ano passado, foi lançada a seção de esportes (Vice Sports). No final de 2015, o site passou a publicar reportagens que se encaixam em outras verticais existentes no exterior, como culinária (Munchies) e moda e estilo (i-D). Segundo Daniel Conti, a produção desses conteúdos deve ser intensificada em 2016 e existe a possibilidade de introdução desses canais no país. O conteúdo de Fightland, a vertical de MMA que seria introduzida no país em 2014 conforme planos relatados naquele ano, está sendo trabalhado dentro de Vice Sports.

Dados de dezembro de 2015 mostram que a Vice Brasil teve naquele mês 2.150.351 visitantes únicos e 3.580.787 páginas visitadas. Para efeito de comparação, o portal Catraca Livre, que visa a faixa de público semelhante, registra média de 25 milhões de visitantes únicos. “Nossa relevância é muito mais justificada pela forma com que ‘influencers’ se relacionam conosco e com nosso conteúdo, pelo nosso trabalho de curadoria e de engajamento”, diz Conti, preferindo dar aos números de audiência uma leitura qualitativa. “Costumamos dizer que a Vice é uma empresa muito mais de ‘share’ do que de ‘like’.”

De todo modo, a operação brasileira fez uma recente mudança na gestão das suas redes sociais para ampliar audiência e alcance. Criou páginas locais no Facebook e no Twitter para postar o seu conteúdo, o que antes era feito apenas nos perfis globais. Mas ainda há pouca participação dos leitores e interação. Segundo Conti, a Vice vem aprimorando a aplicação de dados de business intelligence nas ações nas mídias sociais para se aproximar mais de seu público.

Parcerias com a velha mídia

O estabelecimento de parcerias com outros veículos para a distribuição de seus conteúdos faz parte da estratégia de amplificação de público e de fortalecimento da marca Vice. No Brasil, o site tem parceria com a Folha de S.Paulo, Catraca Livre, Brasil Post e outros portais e sites de “nicho”, que republicam materiais selecionados.

O editor-executivo da Folha, Sérgio Dávila, diz que os conteúdos da Vice trouxeram uma “boa audiência” para o site do jornal, sem quantificá–la. A Folha pretende ainda publicar textos na edição impressa e ampliar a parceria, que vem desde abril de 2015, para a produção de reportagens conjuntas. Para Conti, no novo cenário do mercado de mídia digital o colaborativismo é um conceito cada vez mais comum. Nesse contexto, um player que pudesse ser considerado um concorrente (em público-alvo, por exemplo) pode ser um parceiro em projetos e em distribuição de conteúdo.

Estar na mídia tradicional parece, em princípio, um contrassenso para um veículo que fala para um público da web e que, em certa medida, repudia os valores da velha mídia. Parece, ainda, o caminho inverso que a imprensa tradicional tenta sofridamente percorrer. Mas a Vice consegue fazer o exercício da convergência digital aparentemente sem grandes dificuldades e invade os espaços alheios oferecendo a contrapartida de renovação do público a grandes grupos de comunicação.

Estratégia global

Daniel Conti diz que com o lançamento nos Estados Unidos da TV Viceland (joint-venture com A&E), em 29 de fevereiro, a Vice passou a produzir conteúdo de qualidade para todas as plataformas. Ele diz ainda que a distribuição de conteúdo em TV é uma estratégia global do grupo. “Há uma lacuna crescente na programação de TV destinada para jovens”, afirma. Ainda não há previsão de lançamento do canal por aqui, mas a operação brasileira já está colaborando com produção local.

O Brasil está entre os dez principais mercados globais da Vice e é o principal na América Latina. A filial mantém suas atividades com o que fatura no país. Essa condição não permite que, por exemplo, o veículo aumente a frequência da produção própria de vídeos, que exige alto nível de investimento. Para isso, busca parcerias para expandir essa área em 2016. A crise que se abateu sobre toda a economia nacional fez a Vice Brasil adiar investimentos e planos de estruturação. Algum fôlego deverá vir, segundo o CEO, do aporte feito recentemente pela Disney e que será em parte dirigido às operações locais.

Os jovens, de uma maneira geral, gostam do que leem e do que veem na Vice. Parecem mesmo não se incomodar com essa história de conteúdo patrocinado, já que como em qualquer publicação eles têm o direito de escolher o que querem ler ou não. Para o leitor da Vice, isso não desmerece a publicação, nem a torna menos crível. Pelo contrário, “tá lá de cara”, como diz Brás, 26, leitor da Vice Brasil, se a reportagem ou o vídeo é pago por alguma empresa. É isso. Preto no branco.

***

Sandra Muraki é jornalista