Quinta-feira, 11 de dezembro de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1368

A ‘betificação’ da notícia e o jornalismo de apostas

(Foto: Andras Joo/ Unsplash)

As bets estão desembarcando no jornalismo com negócios bilionários que mudarão a forma como as pessoas lidam com a notícia, funcionarão como incentivo à desinformação e serão recebidas como um providencial alívio temporário para a crise no modelo de negócios da imprensa convencional.

Os contratos assinados recentemente por duas grandes redes jornalísticas norte-americanas com duas empresas líderes do chamado ‘mercado de previsões” vão transformar a notícia numa loteria com poucos ganhadores e milhares de perdedores.

As divisões jornalísticas das redes de TV CNN e CNBC contrataram as empresas  Kalshi e Polymarket para promoverem sistemas de apostas baseadas em desfechos possíveis em eventos que integram a agenda pública de debates. As pessoas apostam e os acertadores dividem 80% do valor apostado, enquanto 20% ficam com a empresa.

Antes mesmo do acordo com a CNN, a Kalshi já registrava um espantoso crescimento nos seus negócios, que em 2024 mal chegaram aos US$ 300 milhões, e em 2025 já atingiram o fantástico total de US$ 50 bilhões como faturamento bruto, ou seja quase 137 milhões por dia. A empresa foi criada em 2018 pela dupla Luana Lopes Lara (brasileira) e Tarek Mansour (nascido nos EUA, mas de origem libanesa), quando os dois ainda estavam no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Luana, que tentou o balé clássico antes de mergulhar na tecnologia de ponta, está na lista dos bilionários da revista Forbes.

O modelo de negócios das empresas líderes do “mercado de previsões”, como AugurPredXHedgehog Markets or Gnosis ainda está baseado majoritariamente (cerca de 75% do faturamento) nas apostas esportivas e financeiras. Mas há uma forte tendência para ampliar o “cassino” informativo para áreas ainda não exploradas, como o jornalismo e, em especial, a inteligência artificial, buscando combinar o trabalho de algoritmos em bancos de dados com percepções humanas expressas através de apostas.

Dinheiro ou reflexão

A ‘betificação’ da notícia ignora a complexidade dos eventos sociais, políticos e econômicos ao tratá-los como dicotomias, ou seja, apenas dois lados, o vencedor e o perdedor, quem acerta e quem erra. Sua base teórica é a controvertida tese da eficiência dos mercados, desenvolvida pelo prêmio Nobel de Economia de 2013, o norte-americano Eugene Fama. A tese afirma que quem aposta o seu próprio dinheiro tem maiores incentivos a pesquisar e avaliar com mais cuidado dados, fatos e eventos do que numa pesquisa de opiniões. O trabalho de Fama divide opiniões de economistas porque seus críticos afirmam que uma aposta é geralmente baseada em informações que podem ser distorcidas pelo fenômeno da desinformação, produzindo resultados fora da realidade.

A notícia que até agora era vista apenas como uma ferramenta para formar opiniões e entender o mundo passa a ser também matéria-prima para apostas. Torna-se uma oportunidade para especular sobre o futuro com chances de ganhar dinheiro. O noticiário esportivo já alimentava e era alimentado pelas bets que se multiplicaram vertiginosamente nos últimos dois anos, totalizando hoje 189 empresas registradas oficialmente no Brasil. Assim como muita gente passou a ler sobre futebol não por amor ao esporte, mas pensando em ganhar milhões, agora deve aumentar exponencialmente o número daqueles que vão ler sobre temas complexos e nada populares como, por exemplo, a escolha de um novo juiz para o STF. Os apostadores estarão mais preocupados com a possibilidade de ganhar muito dinheiro do que com o equilíbrio político entre os três poderes.

E o jornalismo?

O jornalismo ganha ou perde com a betificação da notícia? Seguramente aumentará o número de pessoas acessando notícias, o que será um bálsamo temporário para centenas de empresas jornalísticas em dificuldades financeiras. Mas, se formos pensar em termos de informação, não há dúvida de que o jornalismo perde, porque não terá mais o controle exclusivo de sua principal matéria-prima – a notícia. Os profissionais continuarão a produzir notícias, investigações, reportagens e comentários analíticos, mas não saberão mais se o público usará este material para formar opinião ou como instrumento para ingressar no grande cassino das apostas.

A betificação da notícia é mais um dilema a ser enfrentado por nós, jornalistas. Estamos diante de uma nova estrutura econômica do capitalismo digital cujas bases financeiras e culturais vão muito além da adrenalina gerada pelos sorteios. Apostas em resultados de eventos futuros criam sérios riscos de manipulação de informações por meio tanto do enviesamento das questões submetidas a apostas como dos resultados finais. Trata-se de um desdobramento do que já acontece com as pesquisas pré-eleitorais de opinião pública, onde o formato da pergunta, o momento da consulta, o tipo de amostra do público influenciam o resultado final que, por sua vez, alimenta interpretações variadas de analistas políticos.

Isto fica claro, por exemplo, na decisão da rede norte-americana CNN de inserir um quadro criado pela Kalshi e que será publicado junto com a notícia sendo transmitida, mostrando o tipo de aposta relacionada ao tema em foco e a respectiva tendência de apostadores. É quase certo que a atenção das pessoas será mais atraída pelo comportamento dos apostadores do que pela notícia. O tradicional discurso do jornalismo, que se vê como função de utilidade pública, passará agora a dividir espaços com o fato de ele ser usado como cereja do bolo na betificação da notícia.

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.