Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Há lugar para criticar algo no Jornalismo num mundo que valida a opinião?

(Imagem: Arquivo)

Outro dia, na reunião anual do Projor, o editor deste Observatório me pediu um artigo a partir de uma crítica minha: falta crítica no Jornalismo. Estou aqui, sentada na minha poltrona cinza, com a coluna torta e a minha gata sentada ao lado pensando por que diabos fui arrumar sarna pra me coçar…

Ouço as maritacas berrando do lado de fora, a rua fica bem barulhenta logo cedo pela manhã. Apesar de São Paulo ser esta selva de cimento poluída, ela tem muitos, mas muitos passarinhos. O sol de outono invade a janela da sala, e ele já chega mais tênue e acolhedor que no verão. Penso que este raciocínio sobre uma suposta falta de crítica veio pelas newsletters matinais que recebo. Será que eu ando lendo pouco? Será que penso isso porque me fechei em uma dezena de fontes que chegam todos os dias na minha caixa de mensagens? Humm… Vamos ver. Também era um pouco assim quando chegava o jornal em papel. Vamos ver onde isto que estou a pensar me leva.

O que vejo são compilados e mais compilados de notícias agregados por robôs e depois selecionados e editados por pessoas, que nomeiam suas curadorias e me mandam esses e-mails com regularidade. Muito interessante. Fico logo sabendo de tudo o que aconteceu ontem, e muitas outras coisas que estão em andamento. Fico sabendo como anda a balbúrdia das mídias sociais, o que interessa às pessoas, quem está teclando mais alto, quem está lacrando ou reclamando. É tudo um emaranhado de agregadores.

Consigo detectar interesses, padrões, olhares, vieses, mas não me engano. Tudo está tão mediado pela tecnologia que acabo sentindo um tédio, tudo se parece. E pior, tem pouca coisa que já não li antes. Quem está pensando de maneira original? Sou eu a única que se incomoda com (a falta) disso? Nestes tempos de ChatGPT, quem está me surpreendendo, trazendo um novo olhar, ajudando a ampliar minha visão de mundo? Provocando alguma sensação em mim? A crítica me ajudava bastante a essa tarefa quando eu era mais jovem. Explico.

Lembro da crítica básica do Jornalismo, na área cultural. Crítica de teatro e cinema. Ela é a crítica-raiz, no sentido de ajudar o público a decidir se quer ou não consumir uma produção artística. Quando eu era moça, eu não queria ser grande repórter nem nada, mas eu desejava talvez virar crítica de teatro. Eu esperava ansiosamente as críticas de uma senhorinha (que já era muito senhorinha nos anos 1990) chamada Barbara Heliodora, que escrevia no jornal O Globo.

E por que eu gostava tanto?

A melhor maneira de explicar isso pela minha memória é lembrar que os textos dela, embora passionais e temíveis, julgavam muito pouco, tinham quase nada de opinião. Parece um contrassenso, #sqn. Também é importante lembrar que meu primeiro namorado de adolescência era ator e vinha de uma família de atores, então eu estava mergulhada nesse mundo, daí talvez esse recorte ou viés canalizado de atenção. Antes de terminar a faculdade eu já tinha visto muito teatro, já tinha lido vários autores etc. Criou-se um filtro. Além de tudo, me intrigava a tia Bárbara ser mulher e ter esse poder.

Seus textos eram muito bem fundamentados, ferinos, às vezes destruidores. Isso tudo e indestrutíveis, se é que me explico. Eu aprendia. Principalmente sobre Shakespeare, que desisti de ler para ver. Tão mais gostoso de ouvir essa prosa. Não gosto de ouvir a voz da minha cabeça quando leio Shakespeare, mas gosto de ouvir a voz dos atores no palco ou em cinema (lembrando aqui de “A Tragédia de Macbeth”, dirigido pelo Joel Coen). Muito disso a Fernanda Torres explicou sobre a “tia Bárbara” aqui (https://piaui.folha.uol.com.br/materia/tia-barbara-a-temivel/).

Voltando. Nos textos de Heliodora tinha história, tinha contexto. Cada palavra era como um pedaço de tudo o que ela tinha estudado sobre aquele tema. Ver a peça ao vivo era entrar na dança desse diálogo. Ela dançava muito bem.

Ela tinha, portanto, autoridade. Há um pouco de conservadorismo em eu pensar assim? Gostar de autoridade? Pode ser. Dane-se. Havia bons críticos homens. Mas não quero falar deles. Quero é falar dela. Que tinha a coragem de escrever também com fúria e paixão mesmo sabendo tanto. O talvez fizesse porque soubesse tanto. O conhecimento a livrava do pecado do recalque. O que ela escrevia era encorpado, trazia tudo o que a consciência e a história dela podiam articular sobre aquela manifestação.

Por isso, gostei bastante desta referência sobre o que é a crítica em si, que me apareceu ao buscar a etimologia da palavra aqui na rede. Saí do Michaelis, abri seis novas telas de busca, e caí em Heidegger a partir do dicionário de Poética da UFRJ, organizado pelo professor Manuel Antônio de Castro (é bem legal, vai lá: dhttp://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/):

“A palavra crítica provém do grego krinein, que significa: diferenciar, realçar. A verdadeira crítica não é criticar no sentido de apontar falhas, repreender, depreciar. Crítica como diferenciação significa: deixar ver o diferente como tal em sua diferença. O que é diferente só o é, uma vez que é diferente com referência a algo. Neste sentido, vemos primeiro o mesmo com referência ao qual o diferente faz parte. Em cada diferenciação este mesmo precisa ser colocado à vista. Em outras palavras, a verdadeira crítica, como este deixar ver, é algo eminentemente positivo. Por isso a verdadeira crítica é rara”.

HEIDEGGER, Martin. Seminários de Zollikon – Protocolos – Diálogos – Cartas. 2. e. revista. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 111.

Quando a crítica é bem fundamentada, ela vem também com/como um presente. Ela se propõe a ajudar, a acrescentar, a melhorar. A crítica, em primeiro lugar, se importa. Quem se propõe a fazer crítica seleciona para olhar. Ao olhar e dissecar, isso já revela o cuidado. Posso fazer isso para destruir algo. Mas a boa crítica não combina com essa atitude comezinha. Eu escolho te ver, eu escolho te analisar, eu escolho quebrar a sua tese em pedaços, eu escolho te separar do todo e adivinhar todas as suas referências. Eu vou olhar com calma e vou relacionar o que vejo com todo o resto que já vi. Eu tenho o poder de te ler. Ao ser meu objeto de interesse, eu te elevo a um lugar de importância. E se decidir te destruir o farei com a intenção de buscar a verdade. Ao mesmo tempo, eu me permito sentir completamente o efeito do que você provoca em mim (seja artigo, peça, filme, seja lei, discurso, ato, seja o próprio fato que aconteceu e que me atravessa). Eu reconheço tua intencionalidade e, ao fazê-lo, posso refletir sobre o que há de humano em mim e em ti. Este ato provoca reações emocionais: admiração, raiva, ódio, desejo. A crítica é ato profundamente humano, ele provoca precipitações, mas repito, quem for alvo da crítica fundamentada receberá argumentos lógicos sustentando esse rojão. É possível aguentar aquilo que vem com um núcleo inquestionável de escuta, análise e verdade.

Diferentemente da reportagem, onde temos que seguir um protocolo rígido – ou deveríamos seguir – na crítica eu faço a aposta de ver e julgar, de ser antítese a algo, mas dou o presente da presença, e da construção conjunta pelo que publico no veículo jornalístico. Sim, eu me importo. Sim, eu via que Bárbara se importava, até quando escrevia sobre algo que considerava medíocre. Sem crítica, como há melhora? Não há culpa, só há responsabilidade. Dos dois lados. Eu observo seu trabalho, eu julgo, mas eu te explico porque eu julgo e analiso. Existe uma beleza dialógica nisso. Porque você sabe de onde eu venho.

Sinto que existe muito pouca crítica fundamentada sendo feita hoje na imprensa. Se existe, onde é que está? Me mostra? Eu não acho. A crítica que explica, provoca e ensina ao leitor. É claro que a Bárbara é só um recorte. Uma saudade repentina que me veio. De ler coisas assim. O crítico devolve e com isso acrescenta algo para quem teve a coragem de se expor em primeiro lugar, produzindo algum artefato narrativo e/ou cultural. O leitor/usuário é testemunha e decide se vai se envol(ver) no jogo.

Fico pensando se essa é uma bobagem minha, e que o mundo mudou e tudo é pautado pelo algoritmo, pelas opiniões jogadas ao léu sem reflexão, e que as pessoas estão satisfeitas com isso. Ninguém é melhor que ninguém. Tudo é igual e todos têm a sua verdade. Elas convivem. É bonito e é estranho. Penso que a maioria das pessoas pode achar crítica arrogância intelectual. E pode ser. Mas o verdadeiro crítico não é lacrador, repito. Tem muito influenciador bem embasado, é verdade também. O duro é achar. Se ele não fecha portas, mas busca abrir, está valendo. Observar informadamente exige retidão e empatia, estudo e prática, como a reportagem.

Existe uma beleza nas profissões que servem aos outros: médicos, enfermeiros, cientistas, professores, cozinheiros. Todos seguem um método. Não que eu esteja defendendo a objetividade jornalística (para isso já teve o excelente artigo do Martin Baron, ex-editor-chefe no Washington Post, prévia de um livro que está pra sair do forno.     

Baron, editor da megareportagem sobre violência sexual praticada por padres e acobertada pela igreja Católica no jornal Boston Globe (veja o filme “Spotlight” se ainda não viu, é maravilhoso, ganhador de Oscar e conta como essa reportagem foi feita), defende não a objetividade, mas a nossa intenção de segui-la. Por isso é que profissionais seguem protocolos. Todos erramos, mas temos um norte, um conjunto de regras que definem um ethos, uma forma de atuar e nos protegem de nossos próprios fantasmas, filtros e preconceitos. Não nos redimem dos erros, é verdade. Mas sem errar não avançamos também, é um jogo que jogamos juntos. Da mesma forma, quem se aventura em criticar algo sabe que está tomando certos riscos. Que criticar sem fundamento é cair no ridículo. Afinal, o crítico também pode ser criticado.

Não tenho muita esperança para esse lugar da crítica no Jornalismo, o próprio fazer da era industrial está virando peça de museu, dada tanta pressão algorítmica por todos os lados, nossa técnica virando comida de robô. Já divagando um pouco, sei que esse protocolo e técnica serviu a uma época do capitalismo, o capitalismo industrial. Olha, e teve muita coisa boa também.  Só podemos lidar com o que é. Estamos entrando numa nova etapa, o capitalismo informacional. Tem poucas décadas desde que começou isso, esse mundo da informática e da internet comercial, versus um século de jornalismo de pirâmide invertida (e isso nos Estados Unidos, que na Europa, a depender do veículo, um lead ainda pode dar sono antes de chegar ao ponto). E como tudo, pode ser bom ou ruim. Fiquei muitos anos refletindo sobre o “por que”, achava a pergunta mais importante, talvez porque tenha me interessado por design estratégico nos últimos anos, pra entender como quem desenhou esse cassino informacional o construiu. Agora estou achando melhor atualizar para o “como”. Como as coisas serão feitas daqui pra frente com a inteligência artificial talvez seja a pergunta mais interessante de investigar jornalisticamente. O que, quando e onde ficaram para um passado bem mais positivista. Isso quase não importa. Na tela, tudo vira discurso.

Imagino que essas tendências do achismo raso, da opinião e do escândalo continuarão enquanto os sistemas comunicacionais continuarem a lucrar com o barulho e inundação informacional que geram. O eterno fluxo que nos tira da consciência do momento, o momento passa a ser fabricado, não por mim, mas por outrem que codificou a sucessão de momentos artificiais que vivo na tela e se tornam virtuais/reais a todo momento – lembrando de Pierre Lévy aqui, nossa, ele era tão hype e sumiu… (juro que não quero deixar esse texto cabeçudo, a gata mudou de posição, minha lombar dói ainda mais, talvez eu deva mudar de posição também… Mudei, ela se levantou e saiu, espreguiçando-se e esticando o rabo pra cima, paro e lembro dos textos de Rubem Alves. Saudades dos textos dos Rubem Alves, tinham tanto afeto né? Uma benevolência).

Então a minha pergunta quase que é: quem, na crítica do Jornalismo praticado hoje no país pode me explicar de onde as coisas vêm? Quem é que vai me convencer que o que se reveste de crítica não é só uma construção para me vender uma ideia, sendo que o rei está nu e todas as ideologias estão na sala de estar? A beleza da crítica não é convencer ninguém, tão bonito isso, é simplesmente atestar o que é e como se relaciona com o que foi, na esperança de que alguém ouça e incorpore isso num ciclo criativo. Talvez.

Podemos chamar isso de contextualização, mas crítica não é Jornalismo explicativo. Nem Jornalismo opinativo, que é primo da crítica, mas não se coloca nesse lugar. Onde é que fica o lugar das coisas dentro do ambiente de rede? Como separar e pior, como identificar o que se consome? Como criticar, antes de tudo, a infraestrutura sobre a qual vem emergindo o nosso pensamento e que vem mediando/mercantilizando todas as nossas trocas, inclusive as ideológicas?

Existem muitos códigos na linguagem computacional também. Criticar quem faz os códigos assim é bem importante. Mas não é muito objeto do Jornalismo, portanto não jorra no que lemos e vemos diariamente nos meios de comunicação. Pensando aqui que o protocolo da linguagem informacional é que nela uma coisa só existe se ela for quebrada em dois, bits e bytes. Um dualismo redutor irritante. Ou isto ou aquilo (a gata voltou, está apertando as patinhas na manta do sofá agora, alongando as pernas, talvez eu devesse fazer o mesmo…). Estamos chegando perto da computação quântica, talvez ela possa incorporar isso E aquilo. Nos dar uma sensação de totalidade, de preenchimento, de pertencimento maior. Ou nos hackear completamente que nem saberemos quem somos. Será que isso já não chegou? E será que não foi sempre assim?

Mas aí me pergunto: quem fará a crítica dos novos sistemas computacionais? E quem fará a crítica daqueles que desenham esses sistemas? Porque é tão difícil olhar de fora a tecnologia que sem embute dentro do nosso corpo, e que toma e molda nossa consciência, nossa forma de pensar ao capturar nossa atenção 24 horas por dia? Quem está no controle do que consumimos de informação todos os dias? Somos nós? Tem certeza? Que desejos e artefatos estamos criando ao acoplar o nosso discurso às plataformas que nivelam tudo num formato uniforme e repetitivo da forma? Não foi assim antes com outros artefatos, telefone, telex, rádio, televisão?

A crítica ajuda a formular um dos maiores tesouros dos homens e mulheres livres (falando aqui de sexo, não de gênero, cada um que se expresse como quiser): a capacidade de pensar por si (esse texto tá ficando meio Jordan Peterson? Ou meio Sisek? Acho os dois, no fundo, meio parecidos, ou eu consigo entender a ambos, é meio neurótico isso, rs, não, talvez é saudade de sentir o que é universal em nós, de se sentir parte, acho que todo mundo está sentindo falta disso). 

Pensamento crítico. Somos produto, é verdade, mas a escolha de levantar todo dia e observar de fora o que me acontece e acontece ao mundo é singular. É essa capacidade que o Jornalismo com método e crítica pode exercitar. Olhar sem julgar, depois conectar corações e mentes (ah e úteros, olha que a mulherada esqueceu deles como lugar primeiro da criação). Caí no buraco de Alice? Não sei. A gata está pegando no sono. E eu tentando acordar de vez. Decido sair para caminhar e fazer uns alongamentos. Estalar o esqueleto. Voltar pros meus afazeres. Agora deu sede, o nariz e a garganta secam no outono em São Paulo. Ginástica a gente faz todo dia, no corpo e no cérebro, não importa a estação. Ver se tira um pouco o peso nas costas. 

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Adriana Garcia é Jornalista, professora e consultora em design estratégico e mídias digitais, tem mestrado pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e foi J.S.Knight fellow na Universidade de Stanford, na Califórnia (2013). Atuou na Reuters, Folha de S.Paulo, VejaSP e Exame. Foi diretora de Comunicação Digital da Rio 2016. Fundadora da Orbital Mídia.