Saturday, 12 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Isenção: procura-se

Há coisas que eu me esforço para tolerar, mas há sempre um ponto em que ultrapassam a linha do bom senso e forçam uma sacudida nos indivíduos, a fim de que eles retomem a capacidade de orientação e tenham ciência das coisas a sua volta.

Era fácil, por demais óbvio, prever uma comoção rio-grandense com a partida-sem-volta do Brizola. Igualmente era, de certo modo, natural e aceitável imaginar que a morte (essa de fato) de um homem que exercia uma liderança política indiscutível fosse emocionar os gaúchos, como eu, e a muitos brasileiros, também, afinal o velho Leonel construiu uma trajetória que não pode ser desprezada pelo seu contexto integral, ainda que não se comungasse de muitas ‘posições’ deste homem. E além do mais, ele tinha um predicado que o abonava com letras maiúsculas na História: lutou contra a ditadura, contra o obscurantismo dos que queriam governar com tanques de guerra e impedir a liberdade de expressão – isso dá vultosos e pertinentes créditos a qualquer mortal, pois não fossem essas pessoas nós não estaríamos aqui dizendo o que pensamos sem correr sérios riscos.

Só o que não era ‘previsível’ era que a morte do Brizola fosse transformada em nova bravata gaúcha. Até a data em que escrevo, 24/6/2004, os jornais do pampa seguem insuflando o velho sentimento de um gauchismo que volta e meia ressurge nos ‘quatro costados’ do Rio Grande.

Aos apaixonados e identificados politicamente pode-se até conceder que a emoção momentaneamente substitua a razão, mas das demais pessoas públicas e da imprensa em geral exige-se um mínimo de distanciamento emocional que permita que estes ajam em auxílio das pessoas que ora estão desorientadas pela perda de um ente querido. Só que os jornais de Porto Alegre, por exemplo, esqueceram que cobrem fatos e simplesmente se uniram em torno do caixão do ex-governador para chorar copiosamente e gritar palavras de ordem.

O que menos importa

Homenagem é uma coisa, ainda que haja o estranho costume de fazê-la apenas quando o sujeito já não pode mais ouvir, e esta permite que se dedique tantas páginas quanto o veículo tiver à disposição; mas fazer disso um ‘resgate’ do orgulho regional e incitar a que de uma hora para a outra os inimigos todos dêem as mãos e sentem para saborear o mesmo churrasco é, no mínimo, um contra-senso.

Não consigo entender, ou melhor, não consigo aceitar que se faça correlação entre a capacidade de uma pessoa e o lugar em que ela nasceu. É preciso avisar aos meus conterrâneos que Brizola foi Brizola porque ele se fez assim, porque ele construiu a sua história assim, não foi porque ele nasceu no território farrapo. Ou alguém acha que ele teria sido um ilustre desconhecido se nascesse no Rio de Janeiro? Tancredo Neves foi menos importante porque não é gaúcho? Carlos Drummond de Andrade foi um poeta ‘menor’ porque era mineiro? Clarice Lispector não foi uma das maiores escritoras brasileiras de todos os tempos porque nasceu em Tchetchelnik, na Ucrânia? Ferreira Gullar vai deixar de ser o maior poeta vivo só porque é maranhense e não nasceu com lenço vermelho no pescoço? Ora, para quem ainda não sabe, lamento informar: não é o lugar que faz a pessoa.

Por isso que não vejo o menor sentido em empenhar a luta do Brizola a um ‘heroísmo gaúcho’, como hoje bradam as vozes do pampa.

Todos os articulistas da minha terra, da política ao futebol, da economia à moda e estilo, renderam as suas condolências ao líder da Legalidade, numa unanimidade que causa senão espanto – pois em vida quase ninguém gastava uma linha para falar de Leonel Brizola, salvo os seguidores óbvios. De repente, o Rio Grande inteiro se revelou brizolista desde criancinha: todo mundo tem uma história para contar de quando o pai o levou para recepcionar o ‘doutor Leonel’!

Até aí, tudo bem, porque as pessoas têm uma inevitável atração por flashes e holofotes, e até a morte alheia é um pretexto imperdível para manifestar opiniões que não acrescentam fundamentalmente nada. A menos que os leitores de um jornal julguem relevante saber que em determinado dia da história o ‘doutor Leonel’ comeu um pastel de frango e bebeu uma pinga no bar do Zé.

E dos políticos não se podia esperar outra coisa que senão isso que já estão fazendo: posando como abutres em volta do corpo ainda quente para reivindicar o legado de liderança trabalhista. É um Garotinho aqui, outro espertinho ali – e a morte em si é o que menos importa, afinal.

No calor da hora

Mas dos veículos de comunicação assusta saber que um episódio desses deixa tão explicitamente escancarada a contradição entre o discurso das chefias da redação e o que acaba efetivamente indo para as roldanas do parque gráfico, porque ‘isenção’ não combina muito com nacionalismo ou regionalismo exacerbados.

Zero Hora, por exemplo, além da cobertura maciça e do pronto engajamento dos articulistas, tornou o espaço de cartas dos leitores (que vem discreta e silenciosamente diminuindo a cada ano, graças a pequenas ‘inserções’ sistemáticas na página) um périplo exclusivo de homenagens póstumas ao filho da terra, ao menos na quarta e na quinta-feira imediatamente posteriores ao falecimento. Olhando assim, dá até a entender que o estado inteiro vive desde a última terça-feira apenas em função da morte do Brizola, que o cidadão-comum não tem outros problemas com que se preocupar. E a ZH foi mais longe – na seção ‘Opinião ZH’, da edição de 24/6, em determinado trecho está escrito assim: ‘(…) Quando começou o Hino Farroupilha, logo a seguir, o Rio Grande inteiro já estava às lágrimas, acompanhando as imagens da TVCOM’.

Bom, cabe dizer que a TVCOM é um canal do Grupo RBS que transmite sinal em UHF e, portanto, não chega ao ‘Rio Grande inteiro’, quando muito às residências situadas em um plano mais elevado de parte da região metropolitana ou de quem recebe o sinal por cabo ou satélite. E não creio que todos estivessem ‘às lágrimas’ como referiu o editorial. Mas o que pensará o cidadão que folhear o jornal em São Paulo ou quem acessar a versão online mundo afora?

Repito: acho muito justo referendar a história de Leonel Brizola, mas esperava-se que o exemplo relativo ao WTC, quando parte da imprensa americana se deixou levar pelo calor dos acontecimentos, servisse para que agora os jornais do mundo inteiro não confundissem mais a transcrição dos fatos com participação nos fatos.

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