Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A responsabilização da mídia hegemônica em tempos de pandemia

(Foto: Alexandre Beck)

A pandemia ocasionada pelo novo coronavírus, covid-19, que assola o planeta e ganha manchetes em todos os jornais do Brasil e do mundo, pode ser compreendida sob o nosso escopo analítico como síntese de múltiplas determinações. Senão, vejamos. Os grupos empresariais jornalísticos, como aparelhos privados de hegemonia e, portanto, ativos nas disputas pela construção de consensos coletivos, foram eixos fundamentais para o golpe de 2016 no Brasil, aliançados com o Congresso, com o Supremo e com o grande capital! O golpe e os seus desdobramentos, como sabemos, fragilizaram ainda mais os serviços públicos, incluindo aí a saúde pública. Se a mídia hegemônica educa, nos termos gramscianos, pode-se afirmar sem peias que a mesma se comportou – e se comporta – com evidente interesse de classe, assumindo-se como “sujeito coletivo” e tomando a dianteira como “posição oposicionista”, criminalizando manifestações sociais e minimizando a violência do capital contra a classe trabalhadora.

Como exemplo do que comentamos anteriormente, basta lembrarmos a pouca cobertura jornalística sobre as manifestações populares no Chile, evidente conjuntura de que as reformas ultraliberais naquele país foram nocivas para grande parcela da população, que não possui adequada cobertura previdenciária, além de outros serviços públicos essenciais. O Chicago boy, Paulo Guedes, vem aplicando no Brasil o receituário realizado durante a ditadura Pinochet (1973-1990) por meio de um modelo econômico ultraliberal, acompanhado de sua face autoritária, representado pelo insano capitão reformado do Exército e sua claque de ministros, apelidados acertadamente de “napoleões de hospício” pelo jornalista Mino Carta. Tal modelo econômico defendido pelo Chicago boy se assenta no capital financeiro, que não produz absolutamente nada, valorizando o consumo acima de tudo, a meritocracia, fazendo vistas grossas às falhas sistêmicas e recorrentes do ultraliberalismo em marcha.

Se a mídia hegemônica tradicional estivesse, efetivamente, comprometida com a ética, o interesse público, a verdade dos fatos, com a imparcialidade, não nos teria deixado um legado de sínteses aligeiradas sobre os fenômenos históricos recentes, pois em muitos casos adulteraram ou forjaram fatos; manipularam as declarações de fontes, disseminaram erros de informação e, pior, por meio de argumentações duvidosas e produções de sentidos, contribuíram para o forjamento de um consenso que derrubou uma presidente eleita por meio de angulações editoriais (tanto nos jornais impressos como nos noticiários televisivos e plataformas digitais) que foram minando, sistematicamente, um governo, um partido e a tão alquebrada democracia tupiniquim.

Quando o capitão reformado do Exército venceu as eleições de 2018, a mídia hegemônica procurou tratá-lo como estadista. Isso foi se mostrando inócuo, dadas as demonstrações patológicas do capitão, plenamente coerente com a sua trajetória pífia como militar e parlamentar. Bolsonaro e seus lisérgicos ministros desmontaram e sucatearam ainda mais os serviços públicos; combateram e combatem a ciência sistematizada; dão demonstrações exemplares do desprezo que têm pela educação e saúde públicas, beneficiando o grande capital, além da subserviência execrável aos ditames dos EUA. O anticientificismo e os recuos da teoria e da política defendidos pelos bolsonaristas não foram combatidos de maneira enérgica pelos grupos empresariais jornalísticos, que se tornaram, eventualmente, alvos, ainda que tenham contribuído de forma efetiva com o golpe de 2016, que beneficiou amplamente Bolsonaro.

A mídia hegemônica parece se ressentir de que os serviços de saúde são insuficientes para atender a população brasileira diante de uma pandemia que se mostra exterminadora. Ora, recordar é viver! O ideário neoliberal veio com toda a sua carga após o golpe de 2016, especialmente em 2017, quando os noticiários televisivos, jornais e revistas dos grupos empresariais jornalísticos, como num mantra, repetiam ad nauseam o documento elaborado pelo Banco Mundial (BM) denominado Um ajuste justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil, com o claro intento de convencer a classe trabalhadora sobre a necessidade de ajustes fiscais mais severos, atacando os serviços públicos e, por tabela, seus servidores (“privilegiados”, conforme a pauta jornalística empresarial). O documento do BM, num exercício de ficção maquiavélica, assentado apenas em referências econométricas, desconsidera a história política e econômica do Brasil, como se tivéssemos vivenciado uma “era do ouro” do capitalismo com as benesses do Estado de bem-estar social. O enfoque desse organismo internacional multilateral é o “alívio da pobreza”, para que revoltas e rebeliões possam ser evitadas por meio de políticas compensatórias (apassivamento social). Ao mesmo tempo, o BM procura assegurar que o Brasil possa elevar o superávit primário para continuar pagando a impagável dívida pública, retirando uma parcela cada vez maior, desviado a poucos detentores do capital financeiro improdutivo os já parcos tributos extraídos compulsoriamente da população, essenciais a investimentos em saúde e educação.

A argumentação conveniente do BM de que os servidores públicos são pouco produtivos e de que as soluções não são políticas, revelando tão somente o que é do interesse dos países centrais do capital, denota o pouco rigor de suas recomendações, tanto no que tange ao ponto de vista técnico-científico quanto no plano ético. Isso significa que o BM não analisa as consequências da quase ausência de tributos sobre a renda, o patrimônio, a herança e as transações financeiras; como se comportassem de maneira incauta ou distraída, os signatários do documento do BM não fazem qualquer menção às bilionárias perdas de receitas, afirmando que a equidade nas contas públicas do Brasil só pode ser alcançada com a diminuição dos “gastos” sociais. A preocupação desse organismo internacional multilateral é com a “eficiência”, expressão utilizada mais de 120 vezes no relatório, ainda que não haja qualquer preocupação teórico-metodológica em compreender a função social da universidade ou do ensino superior público no âmbito do capitalismo dependente, desigual e combinado.

Assim, e à guisa de uma conclusão parcial, a mídia hegemônica tradicional, ainda que tenha comemorado a ampliação de sua credibilidade no que tange ao apuro das notícias em tempos de pandemia do novo coronavírus, conforme recentes pesquisas do Instituto Datafolha, está muito longe de problematizar os efeitos devastadores da concentração de renda e da desigualdade social em larga escala, que afetam os mais pobres nas periferias das médias e grandes cidades do Brasil. Por certo, esses pobres, que estão nas estatísticas como desempregados (mais de 12 milhões), desalentados (aproximadamente 5 milhões) ou trabalhando na informalidade (38 milhões, em média) serão os mais afetados pela covid-19. Como o governo Bolsonaro flerta com o fascismo e a xenofobia, deliciando-se com a difusão criminosa das fake news, a racionalidade acaba sendo posta em xeque, sendo substituída pela emoção, onde as disputas políticas não seriam mais necessárias e a ciência deveria ser tratada com suspeita e/ou total desprezo. A “resignação cognitiva” retira de cena a ponderação racional, dando lugar à convicção arraigada.

Em tal conjuntura em que personalidades populistas autoritárias assumiram o poder executivo em várias partes do mundo, é de se supor que mesmo a mídia hegemônica tenha como objetivo fornecer notícias confiáveis. Os populistas autoritários procuram simplificar tudo, descontextualizando questões complexas para que as mesmas fiquem, deliberadamente, sem respostas. E, nisso, as ideias pós-modernas foram importantes alavancas para a instauração da era da pós-verdade, tendo em vista que o “pós-modernismo foi e é uma campanha teórica que apelou à esquerda desiludida, ansiando decifrar um século em que as antigas certezas da vanguarda marxista (aparentemente) tinham se esfarelado diante dela. Muitas vezes incompreensível em sua terminologia e inquietação intelectual, seus protagonistas principais se esforçaram para encontrar uma nova política de emancipação social em meio aos escombros. Os pós-modernos forneceram a artilharia ‘teórica’(?) necessária que deu prestígio aos cínicos elegantes, tornando-se uma mera ferrugem sobre o metal da verdade”, conforme análise realizada por D’Ancona.

Os tempos da pandemia são tempos em que a indiferença é o maior desafio para aqueles que defendem a verdade. É uma longa batalha. O terreno foi até agora fértil para os populistas autoritários. A desigualdade social, a falta de moradia, educação e saúde públicas precarizadas, ausência de trabalho formal, não podem ser enfrentadas com discursos pífios ou provocações rasteiras pelas redes sociais. Nas periferias brasileiras, a pobreza é combatida por meio do extermínio dos pobres; a educação pública e seus professores são igualmente desqualificados e combatidos como “doutrinadores ideológicos”. Os agentes de saúde e médicos trabalham em hospitais e postos de saúde precarizados. Há de se dar limite à sanha de um governo que ataca a população mais socialmente vulnerável. A prática do extermínio dos pobres é uma das faces fascistizantes do governo que aí está, com a conivência de muitos bolsonaristas (30%, segundo o Instituto Datafolha) que, contraditoriamente, também são afetados diretamente por tais práticas.

A razão necessita dar balizas à emotividade parva que assola esse país! E a mídia hegemônica tradicional nunca foi inocente!

Publicado originalmente no site objETHOS.

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Jéferson Silveira Dantas é doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador associado do objETHOS.