
(Foto: macrovector on Freepik)
Para quem entrou na faculdade de jornalismo e aprendeu a datilografar numa portentosa máquina Olivetti, testemunhar o avanço desenfreado da IA profissão adentro é um grande desafio, para não dizer espanto. A turma da velha guarda, na qual obviamente me incluo, assiste perplexa a tantas especulações.
Não é novidade, o ChatGPT-4 já previu 80 profissões que vão desaparecer, e dessa lista não escapa ninguém: jornalista, redator, editor, revisor, pesquisador, analista de dados, fotógrafo e até os social media. Parece que essa máquina não está para brincadeira, pois as habilidades que afirma possuir são absolutamente grandiosas: conteúdos criativos e de alta qualidade, gerenciamento, pesquisas e análises complexas de grandes volumes de dados, e por aí vai…
E os cronistas? Será o fim? Posso estar enganada ou até mesmo perdida no otimismo, mas não creio que seja o caso para grandes preocupações. E afirmo isso porque sei que a crônica faz parte dessa realidade eterna que é o mundo da narrativa. Ela é arquetípica: contamos histórias desde tempos imemoriais, olhando para o céu ou sentados ao redor de uma fogueira.
Não se sabe com exatidão quando esse gênero surgiu, mas Machado de Assis especulava que há toda a probabilidade de crer que foi coletânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor […] Eis a origem da crônica.
E se o gênero achou terreno fértil no Brasil é porque nós, brasileiras e brasileiros, adoramos ouvir e contar uma boa história. Prova inconteste foi o surpreendente sucesso da pesquisa nacional sobre o Saci Pererê, “Mitologia Brasílica”, lançada por Monteiro Lobato. Adesão total. Estamos sempre disponíveis, inteiros e entregues a uma contação caprichada, não importando assunto, tempo ou lugar: na fila do banco, no boteco, no dentista, na praia, no mercado, faça chuva ou faça sol.
Portanto, mesmo após essa passagem catastrófica e irremediável da IA pelos meios de comunicação, estou certa de que a crônica brasileira seguirá firme. Lourenço Diaféria dizia que a necessidade desse gênero era óbvia, pois é a crônica que mostra o outro lado de tudo, dando credibilidade aos jornais, tão saturados de notícias reais demais para serem levadas a sério. E complementava: a sua função é explodir, é não deixar a peteca cair, é acordar as pessoas que estão dormindo de olho aberto, e gritar.
Leve, bem-humorada, satírica, ao mesmo tempo em que trata dos pormenores desimportantes da vida, é igualmente séria, real, profunda, sendo esperta em alinhavar tudo o que vê, privado e público, individual e universal, jornalismo e literatura. Clarice Lispector disse uma vez: o que escrevo hoje é um grito. Um grito de cansaço! Pois a crônica também é isto: um despretensioso segredo revelado por quem enxerga um outro mundo, oculto ao manifesto.
E não há habilidade alguma que dê ao ChatGPT-4 essa sensibilidade. Se o jornalismo atravessa hoje uma crise geral com a entrada massiva desses robôs em suas produções, substituindo a muitos de seus profissionais; o cronista, por sua vez, é e sempre será insubstituível, pois é quem guarda aquela alma encantada e misteriosa, certamente mística, que nos fascina e nos mantém conectados com o que realmente importa na vida.
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Carol Noguëira é jornalista freelancer, mestra em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e graduada em Psicologia pela PUC-Rio.