Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalismo e ética das fontes

Existe um Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, como há códigos de ética nacionais e mundiais para sinalizar o decoro nas mais variadas categorias profissionais e humanas, mas está passando da hora de existir também um Código de Ética da Fonte Jornalística, pois a informação é um bem público e não uma arma a serviço de interesses, paixões, melindres, sabotagens e todo tipo de maus usos de expedientes que ao longo de séculos a democracia inventou, como é o caso da fonte jornalística.

A matéria de Veja intitulada “Madraçal no Planalto” (edição corrente, data de capa de 6/7/2011) teria tido o destino natural de uma reportagem do gênero “jornalismo investigativo” – que é a de funcionar como um instrumento de utilidade pública e de ser um serviço ao público – se não tivesse chegado ao extremo de um estilo que nos últimos anos tem caracterizado esse periódico, que é a editorialização dos fatos ou mesmo o enviesamento dos mesmos ao ponto do delírio.

Forma poliédrica

Ocorrerá a alguém com saúde, lucidez e sobriedade andar pela Universidade de Brasília e deduzir que, às vésperas de completar meio século, essa instituição se tenha metamorfoseado em algo monstruoso e bestial, digno de ser exposto publicamente como um ente de fundamentalismo ideológico extremado e, o que é pior, de perseguição a quem não concorda com uma suposta ordem discursiva implantada? Ou será que os fatos dependem muito dos olhos de quem os vê?

Brasília e, agora, a UnB sofrem de um estigma reducionista, uma espécie de metonímia ao contrário, o todo pela parte. Brasília tem mais de 2 milhões de pessoas, mas os brasilienses são carimbados como gentílicos de uma Babilônia. A UnB é uma cidade universitária e por ela circulam 40 mil pessoas, avisadamente encaradas como pobres alienados à mercê de uma Sodoma, que em nome do saber lhes ensina toda sorte de pecados, os capitais e os da Capital. E os do Planalto, também. É como se cada habitante deste Planalto Central fosse responsável direito, não pelo que emana de bom dos palácios, mas pelo que eles expelem de pior.

Em 1920 Rui Barbosa preparou uma conferência, “A imprensa e o dever da verdade” (reeditada em 2004), na qual afirma que a imprensa representa os olhos da sociedade e que se ela mal vê, tropeça. E advertia para o papel desempenhado pelos jornalistas, pois se não servissem à clareira das estradas, conduziriam o público à escuridão.

O discurso de Rui seria pronunciado numa noite e a edição do mesmo se daria em benefício de um asilo de órfãos. Mas o grande jurista adoeceu e o seu texto foi lido por um colega, João Mangabeira.

Socorro, Rui Barbosa! Venha renovar as suas palavras em benefícios dos órfãos, desta feita dos órfãos de lealdade para com os fatos. E, neste momento, especialmente no que se refere a uma relação entre fonte e repórter, pois se o repórter como guia de cego o leva para o buraco, imagine que desventura da sociedade enxergar mal por conta daqueles que orientam os guias.

Ser fonte jornalística é ser fonte de luz, de acordo com uma tradição iluminista segundo a qual a imprensa representa a centralidade num projeto de Esclarecimento, pois ela se situa num ponto equidistante de todos, o cruzamento dos caminhos, a topologia de Hermes, o mensageiro. Lamentavelmente, hoje, essas fontes traem a imparcialidade, o hermetismo inerente ao seu papel, abrem o envelope e alteram o teor da mensagem, entregando à sociedade (via imprensa) não um retrato da realidade e dos fatos, mas uma versão interessada e, portanto, trapaceira.

E também abandonam o decoro para com o estilo, baixam o calão e tratam autoridades instituídas pelo voto com alcunhas e como bandidos a serem tocados a pontapés. É o suposto movimento do “Fora, Zé” (referência ao reitor José Geraldo). Descarrega-se sobre ele todo o nojo que as elites brasileiras têm dos Zés. E qual o mal em ser um Zé? Zé não é uma ontologia por si. Ora, o Brasil é um país de Zés, milhões deles sonhando com uma oportunidade chamada universidade.

Fosse a Veja um veículo publicitário e não um serviço jornalístico, mesmo assim estaria sob o foco de dois grandes códigos brasileiros, o Código de Defesa do Consumidor e o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária. O primeiro remete o comprador ao Procon e o segundo remete o cidadão ao Conar (Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária). Ambos, em seus princípios, condenam: abusar, enganar e iludir.

A imprensa, no entanto, não é fábrica e as notícias não são produtos mercantis. Ou não deveriam ser fornecidas como tal. Na lógica do consumo, se um anúncio é enganoso (teor, preço e efeito) ou abusivo (desrespeitoso, preconceituoso) e se um produto causa danos, existem as reparações. No caso da imprensa, e dos fatos polêmicos, deve haver pelo menos o dever da pluralidade, já que a verdade é uma essência muito complexa. Quando ganha forma, é poliédrica. Na matéria “Madraçal do Planalto”, faltou avisar a al-Qaeda que a UnB é uma sucursal da caverna de Bin Laden.

Serviço ao público

Que fale Rui Barbosa: “A imprensa é a vista da Nação”. E, mais adiante:

“Sem vista mal se vive. Vida sem vista é vida no escuro, vida na soledade, vida no medo, morte em vida: o receio de tudo, dependência de todos; rumo à mercê do acaso; a cada passo, acidentes, perigos, despenhadeiros. Tal a condição em que a publicidade se avariou, e, em vez de ser os olhos, por onde se lhe exerce a visão, ou o cristal, que lha clareia, é a obscuridade, onde se perde, a ruim lente, que lhe turva, ou a droga maligna, que lha perverte, obstando-lhe a notícia da realidade, ou não lha deixando senão adulterada, invertida, enganosa”.

De toda a malignidade a UnB tem sido atribuída. Até a sua sigla tem sido vilipendiada. Seria, agora, UnD, com D de droga. Há, no entanto, pior tóxico do que os químicos: a distorção da realidade ou a transmissão hiperbólica dos problemas. Eles existem, sempre existiram e, neste momento, a fotografia da UnB não está nada bem, está de “filme queimado”, como diz a moçada, por conta de festas irresponsáveis.

E, aqui, um lamento e uma advertência. Quem vem a uma universidade para festejar, para celebrar, para a alegria, e comete ilícitos, saiba: o que você faz será aproveitado pelos detratores de uma instituição pública, ávidos por apresentá-la à imprensa e à opinião pública como uma das piores do mundo, mas dela retiram o salário e a vaidade farisaica dos papers e quotations, como se eles decorressem de uma genialidade exclusivamente pessoal. A flor de lótus, a despeito do pântano.

A UnB é diariamente procurada pela imprensa, sempre que ela precisa de uma ancoragem nos mais variados assuntos, do meio ambiente à sismologia. A imprensa é procurada diariamente por fontes que, na contrapartida da denúncia, procuram fornecer aos jornalistas informações sobre tudo de ruim que nela acontece. Nada a reparar se houvesse espírito público, respeito e decoro. Ocorre, no entanto, algo estranho. Quando se trata de falar de si, em geral o cientista fala na primeira pessoa, é o ego que se enuncia. É uma espécie de radicalização do cogito de Descartes, nos seguintes termos: “Penso, logo o mundo existe”. Humilde, Paulo Freire um dia disse: “Nós pensamos. Logo, existo”.

A dobradinha fonte-jornalista é um benefício. Um serviço ao público. Se a fonte não tiver ética, no entanto, perde a imprensa e a sociedade. Se ambas não souberem o que é isto, mais vale a máxima de Aristóteles: “Com ética, o ser humano é o melhor dos animais. Sem ética, o pior deles”.

 

Leia também

Agendar uma pauta e correr para confirmar – Luiz Gonzaga Motta

***

[Luiz Martins da Silva é jornalista e professor da Universidade de Brasília]