Thursday, 05 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1317

Os detectores de desinformação

Amigo leitor, imagine estar numa praia usando um detector de metais sobre a areia e de repente o aparelho sinaliza algo metálico, uma moeda desconhecida. Você não sabe o valor dela, ignora como foi parar ali e menos ainda quem a perdeu, mas suspeita que pode ser muito valiosa. Esta metáfora para mostrar o papel dos jornalistas na relação com a inteligência artificial foi criada por Joe Amditis, um dos diretores do Center for Cooperative Media (Centro de Mídia Cooperativa), num artigo publicado na plataforma Medium.

Amditis foi muito feliz no exemplo porque deixou claro que a inteligência artificial tem e terá uma função chave no futuro do jornalismo, especialmente o local. O detector de metais faz o papel dos algoritmos digitais que movimentam programas como o Chatbot GPT ou Brad que são insuperáveis em apontar questões chaves em ecossistemas informativos, especialmente nos locais e regionais. Mas são incapazes, ou pouco confiáveis, na hora de contextualizar os dados processados na realidade das pessoas que os acessam.

O surgimento da inteligência artificial provocou um terremoto de intensidade média nas estruturas das empresas que lidam com informação, entre elas o jornalismo, porque esta nova modalidade de processamento de dados digitalizados afeta diretamente a relação entre seres humanos e as mídias. Gera também mudanças noutras áreas, mas aqui nos interessa especialmente a questão da comunicação.

Isto porque, conforme mostra o professor holandês Mark Deuze em seu livro recém-lançado Life in Media, hoje nós não convivemos com as mídias, mas estamos nelas. Não é mais possível nos desconectarmos dos meios de comunicação nos quais estamos permanentemente imersos, salvo durante o sono. A imprensa não é mais o nosso único canal para obter informações. Elas chegam hoje através da publicidade, de mensagens em camisetas, em músicas, filmes, nas telenovelas, nas redes sociais, nos podcasts, shows de auditório, até nos rótulos de produtos.

Estamos cercados por cerca de 120 trilhões de gigabytes em dados só na web aberta, aquela que a gente pode acessar pelo Google. Mas quem entrar na web fechada, como é o caso das grandes empresas usando sistemas sofisticados de buscas, terá à disposição 7,6 quatrilhões de gigabytes, que podem ser recombinados gerando mais uma inimaginável quantidade de novas informações, boa parte delas contaminada pelas chamadas fake news e pela desinformação.

Segundo o professor Josh Goldstein, pesquisador do Centro de Estudos para Segurança e Tecnologias emergentes, da Universidade Georgetown em Washington, experiências mostraram que a inteligência artificial permite criar notícias, perfis, vídeos e áudios falsos em muito menos tempo do que o gasto para identificar o delito informativo. Nos Estados Unidos, a eleição presidencial é só no ano que vem, mas os dois principais pré-candidatos republicanos já usam intensivamente recursos da IA para lançar suspeitas um sobre o outro. 

Josh Goldstein adverte também que as falsificações podem ser desmascaradas, mas seus efeitos continuam porque a disseminação delas é incontrolável, apesar das punições legais, o que segundo ele pode levar a um “perigosíssimo descrédito generalizado na política e nos jornais”.  Steve Bannon, um dos principais gurus da extrema direita norte-americana defende uma estratégia altamente preocupante: “A imprensa é a grande inimiga (da extrema direita) e o jeito de lidar com isto é inundá-la de m….” (1)

Nas eleições brasileiras de 2022, as notícias falsas semearam confusão e conflitos dentro das redes sociais na internet. No ano que vem, nas eleições regionais, será a vez da inteligência artificial marcar presença através das fake news, só que com uma frequência ainda maior e um grau de sofisticação inédito entre todas as estratégias de desinformação. Mais do que nunca estaremos pendentes da ação dos detectores de notícias falsas e da identificação de campanhas de desinformação com fins eleitorais. Esta relação entre jornalismo e inteligência artificial ganha uma importância especial no ambiente local, nas pequenas e médias cidades e nas periferias pobres das metrópoles. 

A grande maioria das pessoas toma decisões políticas em ambientes locais como reuniões familiares, bares, encontros de trabalho e debates comunitários. Não são conversas sobre temas teóricos abstratos, mas sobre realidades concretas, como os problemas da rua, da cidade, do emprego ou da economia doméstica. E quem alimenta estas conversas são as notícias transmitidas principalmente por redes sociais na internet e pela imprensa local. Daí a enorme importância do jornalismo e dos influenciadores locais no condicionamento das decisões eleitorais.

Mas não é só nos períodos pré-eleitorais que a desinformação alimentada pela inteligência artificial afeta a vida das pessoas. Estamos vivendo um período em que o tecido social formado pelas relações interpessoais em comunidades está esgarçado pelo aumento da polarização política e pela radicalização ideológica. Este é um fenômeno potencialmente letal para a democracia e que tem levado muitos pesquisadores do jornalismo a testarem os fluxos informativos locais como ferramenta eficaz para reduzir as tensões e antagonismos na base da sociedade. 

O jornalismo precisa tomar consciência da nova realidade criada pela inteligência artificial no exercício da profissão. Não dá para ir contra ela porque é impossível conter o avanço da tecnologia. A moratória pedida em abril por um manifesto com duas mil assinaturas de empresários, pesquisadores e professores indica o medo que muitos têm das mudanças. Greves como as dos roteiristas e atores de Hollywood têm efeito parcial porque tentam regulamentar uma tecnologia que muda quase que diariamente. O único jeito possível é buscar meios de conviver com a inteligência artificial e a estratégia do detector de desinformação é talvez a mais viável no momento.

[1] The real opposition is the media. And the way to deal with them is to flood the zone with shit . Steve Bannon

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.