Quinta-feira, 11 de dezembro de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1368

Como o jornalismo brasileiro está noticiando as diferentes camadas do tarifaço de Trump

(Foto: Markus Winkler/Pexels)

Julho de 2025 está sendo intenso para o jornalismo brasileiro! O mês, que iniciou com notícias sobre IOF, o aumento do número de Deputados Federais e a reunião do BRICS no Rio de Janeiro, foi marcado pelo tarifaço de Trump no dia nove. A partir dessa data, o jornalismo brasileiro dedicou-se a entender qual a ênfase da carta que desafiou todos os protocolos diplomáticos, a defender a soberania nacional e a analisar o impacto das exigências impostas pelo presidente dos Estados Unidos (EUA).

Ao mesmo tempo em que foram apontadas as conotações políticas e econômicas, também foram destacadas as inconsistências e os erros derivados de um provável “copia e cola” de cartas envidas a outros países. E, como esperado, buscou-se informar sobre a reação do governo brasileiro a um documento tão contraditório e improvável como o que notifica a tarifa de 50% sobre produtos brasileiros importados pelos EUA. Nas primeiras horas após a divulgação do tarifaço, o jornalismo buscou entender o seu conteúdo e os argumentos apresentados por Trump. Esse esforço de entender um documento oficial, que foi divulgado através de uma rede social, precisa atentar para o que está explícito e para o que está nas entrelinhas.

Nesse processo de desvelar a carta e o tarifaço, o jornalismo iniciou pelas primeiras linhas, a relação entre a família Bolsonaro e o governo Trump. Que o ex-presidente Jair Bolsonaro tinha uma admiração especial por Trump, a gente já sabia. Vocês lembram quando o Jair falou “I love you” para Donald Trump? Isso foi em 2019. Dessa vez, em julho de 2025, foi Trump que manifestou seu respeito por Jair Bolsonaro, iniciando uma carta destinada à Lula, atual presidente do Brasil, defendendo um ex-presidente e deixando claro sua preferência. E, assim, Trump, que entende de mídia, pautou o jornalismo brasileiro. Muitos comentaristas e repórteres dedicaram-se a falar e analisar a relação do governo Trump com a família Bolsonaro. Mas o documento tem muitas camadas e, certamente, não se resume apenas ao que está escrito no parágrafo inicial.

Na primeira semana pós-carta, também muito se falou sobre o impacto na economia brasileira. Produtores de café e de suco de laranja foram mencionados diversas vezes, destacando como o aumento do custo dos produtos brasileiros em solo estadunidense vai impactar a exportação e prejudicar a economia brasileira. O vice-presidente Geraldo Alckmin, que também é responsável pela mediação com o setor produtivo e com a Casa Branca, foi citado de forma recorrente nos conteúdos jornalísticos sobre o assunto, o que já era esperado, considerando sua função nesse momento de crise. Entretanto, outra figura política bastante mencionada foi o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Suas tentativas de mediação, e aqui vale uma interrogação sobre essas tentativas, foram tratadas por parte do jornalismo com uma ênfase preocupante. Jornais de grande circulação, como Estadão, noticiaram como Tarcísio estava conduzindo as conversas sobre o tarifaço. Essa abordagem dos jornais sobre o Governador de São Paulo começou a ganhar outros contornos no final da primeira semana pós-carta.

Enquanto jornais ligados aos grandes conglomerados da mídia estavam presos nas primeiras linhas da carta, a Agência Pública já estava atenta a outras evidências do texto. No dia dez de julho, publicou uma reportagem sobre o lobby das Big Techs dos EUA e relacionou o interesse dessas grandes empresas de tecnologia  em investigar práticas comerciais do Brasil que prejudicam seus negócios. Inclusive, segundo A Pública, a Associação da Indústria de Computadores e Comunicações dos EUA publicou uma nota apoiando o tarifaço contra o Brasil pouco tempo depois da postagem de Trump. Isso demorou a ser analisado por outros jornais e está ali, no segundo parágrafo. Precisou que o governo dos EUA publicasse um novo documento, falando do Pix e da 25 de Março, para os jornais atentarem à obsessão de Trump por se prevalecer sobre as demais economias. Como a DW, e tantos outros jornais noticiaram na segunda semana pós-carta, o Pix prejudica os negócios das big techs que investiram em sistemas de pagamento online, como o Google Pay e a ferramenta de pagamentos do WhatsApp. A pressão dos 50% de tarifa é conveniente às big techs americanas, que estão se sentido prejudicadas por iniciativas brasileiras como o Pix, a Lei Geral de Proteção de Dados e a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que responsabiliza as plataformas por conteúdos publicados por usuários.

Se o que está explícito na carta do dia nove tem sido noticiado aos poucos, o que está nas entrelinhas também já começou a aparecer. A Globo veiculou uma reportagem denunciando que pessoas tiveram lucros milionários com a compra e venda de dólares em um intervalo de três horas no dia do tarifaço, a oscilação da moeda estadunidense está relacionada com as tarifas impostas aos produtos brasileiros. Essa situação também ocorreu quando o presidente americano anunciou tarifas contra a África do Sul e a União Europeia. Tem gente com informações privilegiadas ganhando dinheiro com os tarifaços de Trump, resta saber quem são essas pessoas. O preocupante é que, segundo especialistas entrevistados na reportagem, mesmo com a denúncia, dificilmente isso será investigado, pois a investigação precisa ser realiza pela Casa Branca ou pelo Senado do EUA (onde a maioria apoia Trump).

Apesar do respeito mútuo e do “I love you”, a admiração entre Trump e Bolsonaro não é uma questão amigável, ela é baseada em interesses privados e econômicos. Esse olhar demorou a aparecer em grande parte do jornalismo. Apesar de Trump citar Bolsonaro na carta do dia nove, ele defende o ex-presidente por saber que está alinhado aos seus interesses econômicos, enquanto Bolsonaro busca se proteger do julgamento pelo STF. É do interesse da família Bolsonaro que Trump tente coagir as instâncias que sustentam a democracia brasileira. Nem Trump defende a população dos EUA, nem Bolsonaro defende a população brasileira. Ambos defendem o acesso a cargos de poder e, com isso, a ampliação dos próprios ganhos financeiros. A carta do dia nove nos traz pistas de como eles fazem isso, mas para entender essas pistas é preciso que o jornalismo desvele as diferentes camadas do documento e não fique ancorado no primeiro parágrafo.

Publicado originalmente em objETHOS

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Sílvia Meirelles Leite é Professora da UFPEL e pesquisadora do objETHOS