
(Foto: Gerd Altmann por Pixabay)
Vivemos uma era marcada por uma transformação silenciosa, mas profundamente disruptiva: a transição das tecnologias analógicas para as digitais. Essa mudança transcende o aspecto técnico — ela redefine o modo como a humanidade coleta dados, se comunica, consome, trabalha e até mesmo como se percebe.
No coração dessa revolução estão os algoritmos, a inteligência artificial, a internet das coisas e a biotecnologia. Essas tecnologias operam em uma velocidade que desafia a capacidade de regulação e compreensão coletiva. As plataformas digitais passaram a ser não apenas veículos de interação, mas verdadeiros mediadores da vida cotidiana. Elas curam, direcionam, decidem. E nesse processo, muitas vezes silenciosamente, moldam comportamentos e opiniões.
O novo ecossistema levanta questões fundamentais sobre a proteção dos direitos individuais. A coleta massiva e constante de dados pessoais, associada à curadoria algorítmica, exige que se revisite o conceito de privacidade, liberdade de expressão e igualdade. Mais do que nunca, os direitos fundamentais precisam ser compreendidos não só na relação entre o indivíduo e o Estado, mas também nas interações entre particulares — especialmente entre cidadãos e grandes corporações de tecnologia. Nesse cenário, o diálogo entre o Direito Privado e o Direito Constitucional torna-se inevitável e urgente.
A eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas precisa ser fortalecida. O cidadão digital não pode ser reduzido a um conjunto de dados negociáveis. É necessário garantir que os princípios constitucionais penetrem na lógica das plataformas e inspirem uma nova ética digital. Portanto, a transição digital não é apenas um desafio técnico; é sobretudo um desafio jurídico, ético e humano. É preciso que a sociedade, o Estado e o Direito caminhem juntos para assegurar que, nesse admirável mundo novo, os valores fundamentais da dignidade e liberdade continuem sendo o fio condutor do nosso futuro comum.
À medida que algoritmos, inteligência artificial e plataformas digitais reconfiguram as interações humanas, tornam-se visíveis as tensões e convergências entre o Direito Público e o Direito Privado. Estamos diante de uma travessia que exige uma releitura profunda desses dois ramos, tradicionalmente tratados de forma estanque. No ambiente digital, o poder das grandes corporações tecnológicas rivaliza, e por vezes ultrapassa, o poder de Estados soberanos. Plataformas privadas regulam discursos, controlam fluxos de informação e influenciam eleições — funções historicamente atribuídas ao Estado. Isso gera uma zona cinzenta onde as normas do Direito Privado se tornam insuficientes para proteger direitos fundamentais como liberdade de expressão, privacidade e igualdade, demandando a aplicação de princípios de Direito Público nesse novo cenário.
A ética comunicativa, nesse contexto, atua como um ponto de equilíbrio entre o direito de informar e o dever de não causar danos — algo que o Direito Público deve garantir por meio de políticas públicas, marcos regulatórios e ações educativas. Além disso, o direito à comunicação é considerado um 𝗱𝗶𝗿𝗲𝗶𝘁𝗼 𝗵𝘂𝗺𝗮𝗻𝗼 𝗱𝗲 𝗾𝘂𝗮𝗿𝘁𝗮 𝗴𝗲𝗿𝗮𝗰̧𝗮̃𝗼, pois envolve a participação ativa dos cidadãos na produção e circulação de informações. Isso exige do Estado não apenas a proteção contra abusos, mas também o incentivo à diversidade de vozes, especialmente de grupos historicamente marginalizados.
A propósito, Ana Rossi — poeta e professora, autora do livro 𝗦𝗲𝗻𝗱𝗮 (2024) — propôs uma reflexão crítica sobre o que chamou de “𝗺𝗲𝘁𝗼𝗱𝗼𝗹𝗼𝗴𝗶𝗮 𝗱𝗼 𝗺𝗲𝗱𝗼”, contribuindo para o debate com coragem e lucidez: “à espreita de dia de noite/em todos os segundos…medo/𝘧𝘢𝘬𝘦𝘴 𝘯𝘦𝘸𝘴 invadem meu íntimo/quero pensar… insisto em pensar/quero pensar e insistir/o surto veio e passou/as mentiras orquestradas canalizadas e premeditadas/seguem seu caminho e cruzam o meu/me invadem até não saber mais/o certo e o errado/o que deve ser pensado/desperto do pesadelo/e a paz ressoa em mim/não me pegarão… não me manipularão/eles não… outra vez não/e sigo confiante feliz e contente/com meu ser inteiro no dia a dia/o que virá… não sei/mas sei que isto não”.
A verdade, em seu conceito mais puro, é aquilo que corresponde aos fatos, à realidade objetiva. No entanto, na prática humana, a verdade é frequentemente filtrada pela percepção, pela linguagem e, sobretudo, pelos interesses. É aí que a manipulação encontra seu espaço. A manipulação é o ato de distorcer, ocultar ou moldar informações com a intenção de influenciar pensamentos, sentimentos ou ações de outras pessoas. Isso pode acontecer em escalas pequenas—como em relações interpessoais—ou em grandes contextos, como a mídia, a política e a publicidade.
Na era digital, essa tensão se intensifica. Com algoritmos que reforçam bolhas de opinião e o volume avassalador de conteúdo, distinguir o que é verdadeiro do que é manipulado se tornou um desafio cotidiano. A responsabilidade, portanto, recai não apenas sobre quem comunica, mas também sobre quem consome: é preciso olhar com senso crítico, checar fontes, questionar intenções. Assim, a crítica funciona como bússola na travessia digital, ao problematizar excessos, revelar manipulações e incentivar escolhas mais conscientes diante do fluxo incessante de informações e inovações.
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Marcos Fabrício Lopes da Silva é Doutor e Mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE/UFMG). Poeta, escritor, professor e pesquisador. Jornalista diplomado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), e autor do livro 𝗠𝗮𝗰𝗵𝗮𝗱𝗼 𝗱𝗲 𝗔𝘀𝘀𝗶𝘀, 𝗰𝗿𝗶́𝘁𝗶𝗰𝗼 𝗱𝗮 𝗶𝗺𝗽𝗿𝗲𝗻𝘀𝗮 (Outubro Edições, 2023-2024). É participante do Coletivo AVÁ, coorganizador do Sarau Marcante e Membro da Academia Cruzeirense de Letras – ACL (Cruzeiro-DF).