
(Foto: Amr Serag/Unsplash)
Improvável leitora, improvável leitor. Tento imaginar seus olhos percorrendo estas mal digitadas linhas. Visualizo suas pupilas indo e vindo, despertas, acesas. A cena me comove. É de manhã. Nas suas mãos, um jornal de papel se abre sobre a mesa. O cheiro de café aquece o seu entorno. Torço para que você não desista do meu artigo já neste primeiro parágrafo, mas me falta convicção. Por motivos que vou explicar, você é um ente que some na bruma da História. Em tempo: você ainda está aí?
Sob o risco de pedantismo, lembro uma passagem de Hegel que tem sido citada amiúde. Num dado momento entre 1803 e 1805, o pensador da dialética anotou que a leitura do jornal seria uma “oração matinal realista”, ou, em outra versão, a “oração matinal do homem moderno”. Penso nisso quando penso em você.
Hegel sempre teve parte com a razão. Nessa nota em especial, tinha razão de sobra. Há dois séculos, o noticiário e os artigos de fundo davam o contexto em que se movia o cidadão da modernidade, esse amuleto da utopia liberal. Acima da palavra de Deus, o cidadão descrito por Hegel valorizava os fatos e os argumentos. Com base nas informações do dia, calibrava sua postura diante dos dilemas da política e dos impasses do mercado. Lendo as folhas impressas, ele se localizava.
Hoje, quando um motoqueiro empurra o exemplar de um diário para dentro da sua caixa de correio, alguma coisa do século 19 acontece no seu portão. A simples existência de alguém que toma pé dos acontecimentos antes de pôr o pé para fora de casa faz perdurar entre nós um resto do iluminismo. Um resíduo mínimo: esse alguém se tornou uma raridade. Nos nossos dias, uma pessoa com esse perfil, mais do que improvável, é uma relíquia de um realismo cívico pretérito, quase uma peça de museu.
Os meios impressos também tornaram-se uma raridade, mas isso não revoga a fórmula de Hegel. Você, desde que existente, pode muito bem ver as notícias numa tela de celular e, ainda assim, encarnar o “homem moderno” ou a “mulher moderna”. A única diferença é que, se você for mesmo um leitor ou uma leitora digital, a probabilidade de seus olhos terem me seguido até aqui se reduz impiedosamente. Na internet, o leitorado escapole na primeira vírgula. Um raciocínio mais longo, num arco de abstração estendido, como este meu aqui, espanta a freguesia. Jamais será trending topic. Na ciberesfera, a pressa aumenta e a paciência diminui. Falando nisso, cadê você?
Nenhum jornal do presente esconde a saudade dos leitores idos. A audiência debanda, e em ritmo acelerado. O discurso jornalístico, essa língua exótica falada pela imprensa, carece de olhos. O público invocado pelas manchetes não está mais aqui. Nem aí.
Se você olhar para a primeira página do seu jornal — ou para a home na tela do computador, tanto faz — vai notar que tudo ali parece gritar à procura de alguém em estado de inabalável prontidão cidadã: alguém que não se cansa de fiscalizar o poder, de protestar a todo fôlego e de exigir que consertem as instituições. Sim, trata-se de um tipo ideal: o leitor assim sonhado preza a democracia, tem cultura considerável e desprendimento de espírito. Se as evidências desmentem suas presunções, ele muda o ponto de vista e evolui, sem dramas.
Esse tipo ideal não deve ser entendido como uma pessoa, não é bem isso. Ele é, antes, uma das dimensões que habitam o interior de cada pessoa. Explicando melhor: o ser leitor é uma dimensão ao lado de outras dimensões dentro da mesma subjetividade, como a dimensão do torcedor de um time, a do ser místico (umbandista, católico, budista, etc.), a do ser profissional, a do cônjuge ou do celibatário. O ser leitor de jornal é uma dimensão a mais. Nosso trauma é que ela entrou em declínio — dentro de você, inclusive.
Você cobra notícias isentas. Disso já sabemos. Mas você sabe ler as notícias com isenção? Você lê com a curiosidade de quem quer aprender? Ou você lê, quando lê, com o único propósito de patrulhar a opinião alheia? Você posta emojis de caretinhas ferozes em links de textos jornalísticos? A sua relação com o noticiário é pensante ou é pautada pelas mesmas emoções que você experimenta numa celebração mística, num estádio de futebol ou no cinema? Ao ler o jornal, você é um cidadão hegeliano ou um devorador de sensações?
O discurso dos jornais se dirige a um adulto livre, racional e responsável: o titular do direito à informação. Há dois séculos, esse adulto moderno foi consagrado cidadão e deflagrou a ascensão da imprensa. Agora, o sumiço do mesmo cidadão, diluído no entretenimento e no fanatismo, faz eclodir a crise da imprensa. Por isso pergunto: você existe? Ou será que escrevo aqui para uma ficção? Ou para ninguém?
Nota: Sabemos que os jornais passaram a ser lidos por dispositivos de inteligência artificial a serviço dos algoritmos. Se você for uma simples máquina, desconsidere, por favor, os parágrafos acima. Não são para você. Da sua existência eu não duvido nem um pouco. Você não apenas existe — você se expande. Eu estava pensando em gente de carne e osso, gente que evanesce. Eu tinha na cabeça uma quimera.
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Eugênio Bucci é Jornalista e professor da ECA-USP, escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto
