Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Fundações apostam pesado no jornalismo local

(Foto: Pixabay)

Vinte quatro fundações privadas norte-americanas se comprometeram a reunir 500 milhões de dólares para iniciar a criação de um fundo de um bilhão de dólares a serem usados na recuperação e fortalecimento do jornalismo local nos Estados Unidos. Trata-se do maior esforço já feito até agora no país para reduzir a multiplicação dos chamados desertos informativos, regiões sem nenhum veículo jornalístico. 

O que as fundações, entre elas as milionárias Knight, MacArthur e Lenfest, pretendem, é que outras organizações e indivíduos venham a completar os outros 500 milhões de dólares que faltam para atingir a meta de um bilhão. Todo o projeto será coordenado por uma ONG chamada Press Forward, que pode se transformar num modelo a ser seguido por outros países onde também é grande o número de cidades sem jornais ou rádios, como é o caso do Brasil, segundo o Atlas da Notícia, edição 2023.

O volume de dinheiro envolvido no esforço norte-americano para revitalizar os fluxos locais de informação tem muito a ver com o fechamento de 2.200 jornais comunitários desde 2005 e a queda acentuada na participação eleitoral dos moradores nas pequenas cidades. Mas a questão da imprensa comunitária vai muito além disso, pois inúmeros pesquisadores apontam que o jornalismo local tem um papel chave na recomposição das relações sociais destroçadas pela polarização político-ideológica em ascensão no mundo inteiro.

A crise financeira que atingiu toda a imprensa mundial por conta da migração de anunciantes para a internet foi particularmente dura para os jornais e rádios locais cujo desaparecimento gradual gerou um vácuo noticioso que foi sendo ocupado pela agenda dos jornais nacionais. Isto acabou submetendo os moradores de pequenas e medias cidades à crescente polarização político/ideológica em curso na maioria dos países. 

A importância política dos ecossistemas locais

Pesquisadores como o norte-americano Victor Pickard, autor do livro Democracy Without Journalism, Confronting the Misinformation Society,  coincidem na percepção de que é no âmbito local, onde as pessoas se encontram fisicamente, que o combate à polarização, alimentada pela desinformação, consegue os melhores resultados. A interação nos bairros e municípios se apoia basicamente em questões como saúde, educação, segurança, transporte e alimentação, onde a possibilidade de entendimento é muito maior do que em torno de temas abstratos e polarizados como os propostos pela agenda nacional e internacional.  

Há ainda outras questões em jogo. Toda a imprensa mundial já entrou num período de grandes transformações provocadas pela queda de credibilidade, perda de interesse na agenda noticiosa e pela concorrência de plataformas digitais como Facebook, Twitter e Youtube.  Não há mais muitas dúvidas de que os grandes conglomerados midiáticos tradicionais estão com seus dias contados e que a tendência agora é a reconstrução do jornalismo e da imprensa de baixo para cima, ou seja, do local para o nacional.

O jornalismo verticalizado e hierarquizado, construído em cima do uso da notícia como uma mercadoria para atrair anúncios pagos, criou uma narrativa distante das conversas entre as pessoas. O surgimento de influenciadores e a participação do público em redes sociais através de comentários quebrou a rigidez formal padronizada na formatação das informações publicadas na imprensa convencional.  Esta é uma das razões para o fato das notícias da internet terem se tornado mais coloquiais e informais, inclusive pelo fato delas serem, cada vez mais, divulgadas por não jornalistas. 

Mas o jornalismo local tem dois enormes desafios pela frente: o da sua sustentabilidade a longo prazo e o do combate ao combo desinformação/fake news. O dilema financeiro é básico porque dele depende a sobrevivência dos projetos jornalísticos locais online. É também o mais complexo porque cada caso tende a ter uma solução específica como mostram dezenas de estudos em curso na Europa e Estados Unidos. Não há uma fórmula tipo plug and play para todos os projetos. 

O que o Brasil pode aprender com o Press Forward

O fundo de um bilhão de dólares (cerca de 5 bilhões de reais) ainda envolve muitas dúvidas sobre como será aplicado, mas demonstra claramente a importância que as principais fundações atribuem ao papel do jornalismo local na arena política. Isto é importante para países como o Brasil onde a elite empresarial e partidária tradicionalmente imita o que acontece lá no ‘Tio Sam’, o que pode incentivar o debate sobre o futuro da nossa imprensa comunitária.

Está claro que a busca da sustentabilidade do jornalismo local precisa de um impulso inicial que inevitavelmente virá de quem tem dinheiro, ou seja, de governos, fundações privadas ou de conglomerados empresariais. Mas, pesquisas como as do grupo liderado pelo norte-americano Daniel Radcliffe, mostram que a sobrevivência de um projeto depende de uma cesta diversificada de receitas financeiras, onde as doações e financiamentos devem ser complementados com o pagamento de acesso por parte do público e pela prestação de serviços como eventos e cursos. 

De todos os componentes da cesta de receitas, o pagamento de acesso por leitores, ouvintes e telespectadores é o mais importante estrategicamente porque garante um fluxo de receitas mais estável do que as doações e a prestação de serviços. No entanto, é o que cresce mais lentamente, pois envolve uma mudança radical nas rotinas jornalísticas ao exigir um engajamento profundo dos profissionais com leitores, ouvintes, telespectadores e internautas. 

As pessoas, principalmente as de classe média e de baixa renda, só pagarão por notícias se estas forem vistas como essenciais para a sobrevivência diária de cada indivíduo. Esta percepção, que não surgirá do acaso, mas sim de um esforço sistemático por parte dos jornalistas e das empresas de comunicação. 

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.