Quinta-feira, 10 de julho de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1346

Decisão do STF sobre big techs reforça soberania digital brasileira

(Foto: Biljana Jovanovic/Pixabay)

No dia 11 de junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para responsabilizar as chamadas big techs pelos conteúdos publicados pelos usuários em suas redes sociais. O julgamento em questão analisa o artigo 19 do Marco Civil da Internet, que protege as plataformas digitais de serem responsabilizadas por posts considerados ofensivos, extremistas ou excessivamente violentos. A lei atual exige uma decisão judicial para a retirada dessas publicações.

Com a maioria de seis votos, o STF determina que as próprias big techs deverão aprimorar suas ferramentas de moderação de conteúdos a fim de, por iniciativa própria, retirar posts dessa natureza. Até agora, votaram os ministros Gilmar Mendes, André Mendonça, Luiz Fux, Dias Toffoli, Flávio Dino, Cristiano Zanin, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. Faltam os votos de Nunes Marques, Edson Fachin e Cármen Lúcia.

Até o momento, o maior desafio do STF e do presidente Barroso será encontrar uma tese mais consensual, uma vez que, apesar do voto favorável à responsabilização, todos têm divergências consideráveis entre si. Ainda não há consenso, por exemplo, quanto aos tipos de crimes que exigirão remoção imediata do conteúdo, além do prazo que as plataformas digitais terão para fazê-lo e sob quais circunstâncias. 

Barroso, Dino e Zanin preveem em suas teses algo que se aproxima do chamado “dever de cuidado”, presente no Digital Services Act, a legislação europeia sobre plataformas digitais. Nesse tipo de conduta, as plataformas têm a obrigação de remover algumas publicações, sendo responsabilizadas por danos decorrentes da não remoção após uma notificação extrajudicial — como uma denúncia de usuário.

Toffoli e Fux defendem que essas empresas possam ser punidas se não removerem rapidamente a postagem, mesmo que não recebam ordem judicial ou denúncia de usuário. Mendes se posicionou a favor de um regime de remoção sem notificação, mas com ressalvas.

Moraes foi o mais contundente em seu voto. Posicionando-se de maneira próxima a Barroso, Dino e Zanin, questionou as formas com que o modelo de negócio “agressivo e perverso” das big techs se impõe sobre os países, escancarando o tensionamento entre os interesses e a atuação dessas empresas diante das leis, dos valores constitucionais e dos marcos regulatórios, especialmente no Sul Global.

A fala de Moraes recorre ao debate sobre a soberania nacional se estender à soberania digital. No sentido clássico, a soberania se refere à capacidade de os Estados terem controle sobre seu território e instituições; na era da digitalização, amplia-se à capacidade de um Estado regular o fluxo de dados, a moderação de conteúdo e os modelos econômicos das plataformas dentro de seu território. No caso brasileiro, o Marco Civil da Internet é um passo importante, pois estabelece normas de conduta e diretrizes relacionadas ao ambiente digital brasileiro.

Quando Moraes questiona se as big techs podem impor seus modelos “agressivos e perversos” ao Brasil, ele está defendendo que o poder normativo da Constituição e da legislação brasileira deve se sobrepor às práticas privadas de empresas estrangeiras, mesmo que estas aleguem autonomia corporativa ou liberdade de operação. No plano prático, os tensionamentos dessa disputa se manifestam na negligência ou submissão arbitrária em relação às leis nacionais, podendo abrir brechas para práticas que ferem alguns direitos constitucionais ou omitir a atuação e responsabilidade dessas empresas no combate a determinados conteúdos, especialmente desinformações e discursos de ódio.

Junto a isso, questiona-se como essa submissão está vinculada a uma postura estratégica das plataformas diante de determinadas legislações. Ora, basta observar como as big techs acatam e se submetem à legislação europeia (DSA) e se posicionam veementemente contra propostas regulatórias de outros países — basta lembrar como essas empresas agiram durante a votação do PL 2.630/2020 na Câmara dos Deputados. Essa assimetria demonstra como o poder das plataformas as posiciona como atores geopolíticos, que negociam com os Estados conforme interesses econômicos e simbólicos.

A postura do STF também confronta um dos principais pilares argumentativos das big techs: a defesa da autorregulação como princípio normativo e operacional. As empresas alegam que já investem em sistemas sofisticados de moderação de conteúdo, combinando recursos humanos e algoritmos de inteligência artificial. Segundo essa lógica, a imposição de regras estatais rígidas comprometeria a liberdade de expressão, a inovação tecnológica e a segurança jurídica de seus modelos de negócio.

No entanto, a experiência até aqui revela a fragilidade dessa abordagem. Em vez de seguir parâmetros públicos e universais definidos por entidades que regulam esse mercado, por exemplo, a autorregulação depende da atuação isolada de cada empresa, que define seus próprios termos de uso e critérios de moderação. Não há garantias de que essas regras serão efetivamente cumpridas — nem sanções claras em caso de descumprimento. Na prática, esse modelo transfere às plataformas um poder normativo quase soberano, sem transparência, sem controle público e sem responsabilização real.

Por enquanto, André Mendonça foi o único ministro a votar contra a responsabilização. O membro da Corte defende que seria inconstitucional aplicar punições imediatas às big techs sem uma ordem judicial. Apesar disso, é voto vencido. Fato é que o STF caminha para um primeiro movimento na direção da tão divisiva regulação das plataformas digitais. E não foi por falta de pressão de todos os lados.

O governo federal também joga a favor da responsabilização das plataformas digitais no caso em votação no Judiciário. A pauta é considerada uma das principais bandeiras do governo Lula III, e temas correlatos vêm sendo trabalhados de maneira ampla na Secretaria de Políticas Digitais, que integra a Secretaria de Comunicação Social (Secom). Inclusive, o julgamento só foi retomado após o pedido de vista do ministro André Mendonça, por determinação da Advocacia-Geral da União (AGU). Portanto, uma alteração do artigo 19 é vista como um primeiro passo nesse sentido.

Por outro lado, o Congresso Nacional tende a jogar contra a responsabilização das big techs. Inserida no cenário de polarização aguda que se apresenta em curso, grupos e parlamentares mais à direita têm interpretado a medida como autoritária e antidemocrática, tendo consequências diretas na liberdade de expressão. Por outro lado, entende-se como uma ação voltada a garantir cidadania digital e um ambiente virtual orientado pelo pluralismo e pela transparência.

Apesar das críticas quanto ao protagonismo do STF no assunto, a decisão de pautá-lo por parte da Corte ocorre justamente pelo entendimento de que não há vontade política dos parlamentares para fazê-lo. Além disso, sem o apoio do Congresso, o Executivo também fica de mãos atadas. Ou seja, na situação de inércia do Legislativo, seja para um lado ou para outro, coube ao Judiciário tomar a frente de encontrar uma solução para um problema urgente.

Neste momento, o mundo discute como lidar com as redes sociais em um contexto de liberdade desenfreada. A complexidade do tema é evidente, já que tem deixado a atual formação do STF, geralmente tão unida em suas decisões, em posição de divergência quanto à forma da responsabilização. De qualquer modo, a iniciativa da Corte deve ser apreciada como um passo fundamental na atual conjuntura.

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João Pedro Piza é estudante de Jornalismo na Unesp. Na graduação, desenvolveu pesquisa de iniciação científica sobre plataformas digitais, desinformação e democracia. Integra o Laboratório de Estudos em Comunicação, Tecnologia, Educação e Criatividade (Lecotec).

Leonardo Gimenes  é estudante de jornalismo na Unesp. Para ele, discutir o mundo político, visto por muitos de forma negativa, é fundamental para uma democracia tão jovem como a brasileira, ainda em construção.